Frida Kahlo e a (re)invenção de si

por Julia Lima

Nos últimos anos temos visto uma ampliação do número de pesquisas, mostras e revisões dedicadas à artista mexicana Frida Kahlo. Não apenas porque esse movimento já vendo sendo operado desde o início do resgate dessa figura essencial à arte latino-americana nos anos 1980, com livro de Hayden Herrera (1983), ou por causa do filme de Hollywood (2002), mas principalmente porque, na última década, há uma força e um trabalho admirável de pesquisadoras e pesquisadores, artistas, curadoras e críticos de revisar a história da arte para incluir nomes de mulheres, negros, indígenas e outras minorias que sistematicamente ficavam de fora dos cânones e dos panteões. Assim, nos últimos anos temos visto muitas descobertas sobre Kahlo e sobre muitos outros nomes, possibilitando a redação de novas e melhores narrativas.

A exposição realizada no Instituto Tomie Ohtake em 2015, por exemplo, “Frida Kahlo –conexões entre mulheres surrealistas no México”, contribuiu para a expansão das histórias possíveis, colocando-a inclusive como centro do movimento de migração de artistas europeias que fugiam da II Guerra Mundial e escolheram o México porque haviam conhecido Frida em Paris quando uma exposição da mexicana foi organizada por André Breton em uma galeria da capital francesa. Agora, o Victoria and Albert Museum, em Londres, apresenta a mostra “Frida Kahlo: Making Her Self Up“, uma pesquisa profunda sobre as fotografias, os objetos pessoais e as vestimentas da artista e seus significados na personagem que ela criou para si mesma.

Personagem é uma expressão que pode denotar dissimulação ou falsidade, mas no caso de Frida Kahlo é possível argumentar que sua persona era uma mistura de mecanismos de defesa, ambição, desejo inconsciente e contradições às quais todos nós estamos sujeitos. É fácil encontrar em sua obra exemplos desses paradoxos. Em “Autorretrato con cama”, uma pequena pintura, Kahlo aparece sentada sobre uma cama de palha, em uma posição fria e distante do boneco-bebê que está estaticamente deitado sentado ao seu lado, enquanto ela olha pra frente e fuma um cigarro. Essa imagem suscita, sem dúvida, incômodos pela percepção de indiferença e insensibilidade. Mas, analisando a gravura “Frida y el Aborto“, por exemplo, é inegável a força do trauma e do luto da perda do filho no ano de 1932, quando vivia em Detroit junto de Diego Rivera – um dos amores polêmicos de sua vida.

Se a obra mais conhecida do público sobre o tema da maternidade é a dramática pintura de cores vibrantes “Henry Ford Hospital (Cama volando)“, em que a artista se autorretrata nua, encolhida sobre uma cama hospitalar, sangrando sobre lençóis brancos e rodeada de imagens que flutuam à sua volta – símbolos que se ligam a ela por estranhos cordões umbilicais (um feto, um osso pélvico, um modelo anatômico, uma orquídea, um caracol e uma peça mecânica inventada)–, a pequena obra em preto e branco cujas impressões não superam uma dezena parece infinitamente menos impactante, em um primeiro olhar. Entretanto, “Frida y el Aborto” é uma representação do corpo da artista no mesmo formato e posição chapada frontal dos corpos vistos nos livros de anatomia médica, nu, aberto e exposto no ventre; este trabalho, contudo, é também habitado por inúmeras simbologias, que precisam ser decifradas. Em um exame mais detido, essa gravurinha nos revela muitas mais camadas de narrativa superficialmente pendular: Frida ou era absolutamente infeliz por não ter sido mãe, ou era uma mulher egoísta e fria que não queria filhos. Basta olhar para estes três trabalhos de forma um pouco mais atenta para entender que ambas as hipóteses são verdade, e muitas outras também.

Outra reescrita possível da história de Frida é sua relação com Rivera. O filme de 2002 é quase inteiramente dedicado ao relacionamento conturbado dos dois, que chegaram a se divorciar e se casar novamente entre as brigas e os arroubos de paixão. O cinema ajudou a construir um relato predominante que coloca Frida como a mulher apaixonada que sofria profundamente com as traições do marido e com a falência do próprio corpo. No entanto, “Autorretrato con cama“, “El abrazo de amor del Universo” e a própria gravura “Frida y el Aborto” vão de encontro com essa narrativa estanque, supostamente oficial. Em “El abrazo”, a maternidade aparece por meio da figura de Diego, que é segurado por Frida como um bebê, nu e indefeso, no lugar de um filho; depois, no autorretrato com a cama, é representada por um objeto inanimado, a boneca, estranhamente ignorada; e, por fim, surge na representação da artista na litografia sobre o aborto, na qual Frida chora e visceralmente expõe o padecimento, o luto e a frustração com a própria imperfeição, na impossibilidade de gerar vida – ainda que simultaneamente fale da possibilidade criativa da pintura (nessa obra, ela tem um terceiro braço que segura uma paleta de pintura, subvertendo o modelo anatômico).

Já os objetos, fotografias e roupas levados para a mostra em Londres estão sendo expostos pela primeira vez fora do México, e também nos abrem uma nova perspectiva para entender a artista. Sabe-se, por exemplo, que Frida cultivava com afinco a monocelha que se tornou sua marca registrada. No entanto, há muitos indícios de uma vaidade imensa, evidenciada pelos cosméticos que usava: batom Revlon, rouge, esmaltes. Como conciliar essa vaidade com o estranhamento das sobrancelhas não-feitas, gesto que poderia ser entendido como descuido? A preocupação com a auto-imagem também se traduzia nas roupas que escolhia. Os trajes típicos das etnias Tehuana, Mazateca, Zapoteca, entre tantas outras, eram geralmente usados pelas empregadas domésticas e trabalhadoras das classes baixas no país. Kahlo os ostentava como quem vestia grandes estilistas europeus, inclusive em jantares formais e ocasiões de gala. Pode parecer pouco relevante saber dessa “curiosidade”, mas o fato é que cada gesto, cada objeto e cada escolha tinham compelxos significados políticos e estéticos para a artista.

A valorização da cultura pré-hispânica na escolha das roupas e acessórios vinha junto de sua presença em círculos europeus e seu desejo de inserção no star system da arte. A vontade de romper com os padrões de beleza da época era meio contrariada pela frivolidade do cuidado com a aparência. Havia uma intensa luta interna, um embate entre a insegurança gerada por sua figura debilitada pela poliomielite e pelo acidente que sofreu aos 18 anos e a ambição de colocar-se como artista e como mulher forte. Sua independência financeira de Diego era ofuscada pelo amor doentio que ela nutria por ele. A recusa em assumir o papel de dona de casa era amenizada pelo domínio da cozinha, pelos pratos maravilhosos que cozinhava e pelos jantares que organizava. Todas essas contradições foram, de um lado, articuladas por Kahlo em tentativas de cavar seu próprio espaço como artista e como agente político e, de outro, surgiram como consequências da posição marginal ocupada pela América Latina, do fato de ela ser mulher e estar inserida em um contexto machista; foram também resultado da falta de apoio de seu companheiro (que nunca a ajudou a inserir-se no sistema da arte), da difícil relação com a mãe conservadora, e tantos outros vieses: os que construímos voluntariamente e os que a vida nos impõe, informando forçosamente nosso personagem.

Estes exemplos apontam de várias formas para uma leitura menos rasa e linear, e revelam a aguda ambivalência e as incoerências reiteradas que estão por baixo de uma primeira fina camada de apreciação usualmente dedicada a Kahlo. Ainda que alguns argumentem que o conjunto da obra fala muito mais alto que seus objetos pessoais, é importante lembrar que uma figura paradoxal, emaranhada e multifacetada como Frida Kahlo demanda todas as chaves de leitura possíveis para começar a ser desvendada e alcançada como um todo.

Page Reader Press Enter to Read Page Content Out Loud Press Enter to Pause or Restart Reading Page Content Out Loud Press Enter to Stop Reading Page Content Out Loud Screen Reader Support