José Augusto Ribeiro

por Julia Lima

Tempo de leitura estimado: 5 minutos

O ARTEQUEACONTECE entrevistou o curador José Augusto Ribeiro, da Pinacoteca de São Paulo, sobre a nova exposição em cartaz na Pina_Estação, com grandes nomes da arte brasileira. “Invenção de Origem” toma como ponto de partida o filme The Origin of the Night: Amazon Cosmos (1973-77), do artista alemão Lothar Baumgarten, raramente exibido. A partir deste vídeo, o curador selecionou trabalhos icônicos de Tunga, Antonio Dias, Carmela Gross e Solange Pessoa, escolhidos por aspectos formais e temáticos que aludem a tempos e ações primordiais, formando narrativas fictícias sobre a origem da vida.

Confira os melhores momentos dessa conversa!

Julia Lima: Como foi a pesquisa a partir do filme do Lothar Baumgarten? De onde surgiu o interesse por esse assunto quase mítico, sobre trabalhos que trazem narrativas do começo da vida?

José Augusto Ribeiro: Do princípio e do fim da vida né? Tem uma certa escatologia nos trabalhos também, em alguma esfera, do fim das coisas, do fim do mundo. Essa curadoria se inicia numa discussão do Núcleo de Curadoria e Pesquisa do museu junto ao diretor Jochen Volz, que girou em torno dessas aproximações entre arte e antropologia, sobretudo notando como essas aproximações tem sido recorrentes no circuito da arte, seja nos museus, seja em exposições periódicas como bienais e documenta. Podemos até remontar à década de 80, quando houve aquela exposição “Primitivismo” no MoMA, trazendo artistas e obras que se relacionavam a objetos ritualísticos, de culturas que eram chamadas de “primitivas”, e “Magiciens de la terre” também. Tem uma relação entre arte e etnografia que ganha um contorno nesse período. Na verdade, no final do século XIX, início do XX, já havia o interesse por uma produção que era diferente da tradição artística européia.

JL: Até no design, com o grupo Bloomberg por exemplo.

JAG: Claro! Isso motivou uma renovação de visualidade. Então as discussões partiram dessa curiosidade sobre a recorrência dessas intersecções em mostras e instituições. A ideia dessa exposição não era tematizar esse assunto, ao contrário, mas problematizar essa questão. A gente reuniu artistas e trabalhos que tem uma investigação de linguagem experimental importante: nos materiais, na busca de soluções, nos modos de apresentação incomuns. De saída, são trabalhos inquietos em sua constituição física e que resultam em imagens que reportam a tempos imemoriais, a uma época que não se localiza em uma cronologia. Ora tem aparência ancestral, ora primordial.

JL: São trabalhos quase atávicos, como imagens que sempre estiveram com a gente de algum jeito?

JAR: Sim! Há uma ambiguidade, um caráter díspar nos trabalhos que estavam nos interessando, uma busca por formas que não estavam pré-estabelecidas – trabalhos que correm ao largo das categorias. Embora sejam trabalhos que partem de linguagens como pintura, gravura, desenho, escultura, eles enveredam por caminhos que vão resultar em coisas que não estão pré-estabelecidas. Isso aprece no modo como Tunga suspende suas esculturas, ou na produção dos papeis do Antonio Dias no Nepal, com impressões que são ao mesmo tempo meio pop e meio ancestrais. A questão da linguagem era muito importante, porque Não são trabalhos que tematizam a condiçÃo primitiva de um povo ou uma cultura, mas que envolvem coisas e questões de linguagem e visualidades imemoriais, resultando em novidades, em obras selvagens – insubordinadas a categorias e classificações.

JL: Uma coisa que achei interessante nesse sentido é a aproximação de artistas meio distantes. A Carmela, por exemplo, tem uma produção e um método muito singulares, que parecem se opor à produção do Tunga, mística, quase religiosa. Como foi o pareamento de artistas tão potentes mas tão opostos?

JAR: A exposição tenta preservar a autonomia de cada uma das produções, a gente estabelece e sugere conexões, mas procuramos estabelecer critérios que possam firmar um conjunto de obras que tem autonomia. Na Carmela, por exemplo, a gente selecionou 2 trabalhos do mesmo ano, de 1994. Foi curioso apresentar essas duas obras, porque são trabalhos que tem uma aparência de instrumento ou de ferramentas rudimentares ou de pinturas rupestres, mas a forma com que são apresentados tem essa menção a museus de antropologia, ou etnográficos. O que é muito estranho ao modo que vemos a produção da Carmela, no início associada à arte pop e depois à arte conceitual, e esses trabalhos um pouco negam essas classificações. No modo como a mostra se organiza, cada artista ocupa uma parede inteira ou uma sala inteira. E assim conseguimos reforçar o aspecto singular de cada um, com essa diversidade de aparências. Os objetos da Carmela, com aspecto rudimentar mas ao mesmo tempo seriado, se tensionam com as figurações de Tunga. Reunir esses artistas que não são geralmente pensados juntos, não são vistos em bloco, foi uma maneira de particularizar a produção de cada um.

JL: Eu até fiquei surpresa exatamente com isso, porque são poucos artistas para uma coletiva grande, mas com muitos trabalhos de cada nome.

JAR: Exatamente, eu não quis transformar a exposição em um tema no qual incluiríamos centenas de obras. O que está em jogo aqui é a condição inventiva dos trabalhos, por isso as seleções fazem recortes específicos dos artistas. Do Antonio Dias, por exemplo, a gente faz um recorte de 1977 a 1996: 77 é um ano muito importante, é quando ele vai para o Nepal buscar papeis artesanais para a impressão de um trabalho. E daí ele desenvolve um trabalho posterior – essa é nossa hipótese – que está muito informado pelo trabalho que ele iniciou no Nepal e no Tibete naquele ano. Nós quisemos expor um corpo de obras que deixasse evidente como é o modo de produção, onde reside o caráter investigativo dessa obra.

JL: Por isso o título da mostra também faz muito sentido quando pensamos nesses corpos de trabalho – ele fala da origem, de como é a genealogia e a gênese dos trabalhos.

JAR: É, tem esse jogo de linguagem e de sentido com o termo “Invenção de Origem”. Mas uma outra motivação da exposição está no interesse crescente do mundo da arte por outras culturas que não a ocidental.

JL: Nós temos visto muitas situações de encontro entre os antigos gabinetes de curiosidade, as estruturas de museus etnográficos ou científicos com o contemporâneo ultimamente. A 32a Bienal de São Paulo foi uma forma atualizada desse encontro, você não acha?

JAR: Eu acho que esse é um problema super importante, que é para ser pensado, senão corremos o risco de esvaziar o sentido original de objetos que foram produzidos fora do contexto da arte em nome de uma apresentação que muitas vezes é reduzida a estética, ou a pura ilustração. Esse é o momento de colocar isso em pauta, e nesse sentido essa exposição é muito auspiciosa.

JL: Acho que é um projeto muito necessário nesse momento, porque querendo ou não, estamos em um momento – no contexto mais amplo da sociedade – de refletir sobre de onde viemos e para onde estamos caminhando, não?

JAR: Sim, totalmente! Na realidade, a gente pode até expandir esse assunto para a importância hoje das identidades étnicas, de gênero, na discussão das pautas políticas. Esses assuntos se refletem na programação dos museus, muitas exposições são pensadas segundo esses recortes – geográficos, raciais. Tem artistas negros, da América Latina, asiáticos. Tem algo emancipador nessas exposições, mas temos que prestar atenção para que isso transforme as questões e os trabalhos em simples categorias, segmentadas. Mas tomara que essas exposições estejam só colocando uma produção que foi negligenciada até agora, mas não podemos perder de vista colocar esses trabalhos com a força da discussão da arte de maneira geral.

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