Arte transcendental: conheça 16 artistas e suas obras “de outro mundo”

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Território de Ilusões (2021), de Sandra Mazzini

Se na Antiguidade os seres humanos viviam embrenhados entre deuses e suas leis eram norteadas pelo sobrenatural, com o passar dos séculos, o desenvolvimento de uma epistemologia eurocêntrica varreu para baixo do tapete as influências imateriais sobre o mundo cotidiano. A arte, como manifestação das pulsões humanas de cada época, viu-se oscilar entre formas mais ou menos racionais de representação e expressão visual. É o que nos lembra a iminência da abertura da exposição de Hilma Af Klint e Piet Mondrian na Tate Modern, no dia 20 de abril. Os dois, com economias pictóricas diametralmente opostas, tinha no cerne de seu vocabulário visual uma cosmogonia muito própria.

No momento presente, extremamente codificado e permeado por parâmetros e definições cada vez mais específicos sobre qualquer assunto, da Teoria das Cores até sexualidade e identidade de gênero, a arte traça um retorno a uma transcendência que parece querer nos lembrar que, apesar de nomes e conceitos, somos substância fluida e não só material. 

As abordagens transcendentais utilizam estratégias variadas, que vão da quase onipresente pintura ao uso de luzes de LED e de inteligência artificial na criação de imagens espectrais. 

E essa multiplicidade não está apenas nos suportes e técnicas mas nos temas, que vão de uma visão cósmica e quase surreal do corpo feminino a paisagens surrealistas que subvertem signos da cultura de massa, até a abstração que não se fecha numa leitura única, trazendo novas possibilidades de compreensão a cada nova observação. A natureza investe-se de mistério, figuras fantásticas surgem da indefinição de manchas cromáticas, os sentidos libertam-se das amarras da razão. 

Neste texto, elencamos 16 artistas atuais, 8 estrangeiros e 8 brasileiros, cuja produção, de uma forma ou de outra, envereda pelos sinuosos e fluidos caminhos transcendentais. Conheça-os agora:

BRASIL

Visitantes (2017), de Adriana Coppio (divulgação)

Adriana Coppio (1978, Taubaté, SP)

O aspecto sobrenatural das pinturas de Adriana Coppio é sutil. Nem sempre saltam aos olhos figuras abertamente estranhas ou uma configuração espacial surrealista. A difusão das pinceladas (consequentemente, das figuras) e a paleta de cores puxada para marrons e ocres emprestam um tom envelhecido e misterioso às telas, retratando ora paisagens, ora seres mais ou menos definidos. Casas com formas inusitadas, moitas e nuvens estranhamente borradas ou um elemento animal descontextualizado fazem parecer que algo sempre está à espreita em seus quadros.

O Encantamento (2019), de Camile Sproesser (divulgação)

Camile Sproesser (1985, São Paulo, SP)

Misto de iconografia hipster, bestiário animal e fauvismo, o trabalho da pintora paulistana Camile Sproesser abusa de uma paleta de cores histriônicas para conferir humor e imprevisibilidade a cenas ora corriqueiras, ora propensas ao caráter ilustrativo rebuscado e ornamentado do grotesco em versão atual. Nas imagens da artista, nada é o que parece e toda história abre seus significados ao bel-prazer do espectador. Solar e divertido, o universo de Sproesser une o fantástico ao corriqueiro retratando animais, pessoas em cenas absurdas e ícones das ciências sobrenaturais, como o tarô e entidades mitológicas.

Felicia (2019), de Giulia Puntel (divulgação)

Giulia Puntel (1992, Belo Horizonte, MG)

A pintura visceral e matérica de Giulia Puntel empresta escuridão rompida por contrastes em amarelo vivo e roxo a cenas mais ou menos irreais, sejam elas cenas de preparação para a balada até imagens abstratas que subvertem a noção de lógica usual. Uma flor ganha olhos microscópicos em sua corola e parece explodir o contorno da tela, um contorno abstrato se assemelha incomodamente a um corpo disforme. Nada é o que parece em seus trabalhos, que também fazem menções pouco reconhecíveis a cenas de cinema.

Sonia Maria Lucia de Souza (2019), de Marcela Cantuária (foto Vicente de Mello)

Marcela Cantuária (1991, Rio de Janeiro, RJ)

A carioca Marcela Cantuária dispensa apresentações. Em sua trajetória ascendente, atualmente em cartaz no Pérez Art Museum com a individual The South American Dream, a pintora cria em suas telas a tradução contemporânea das artes visuais para o realismo fantástico sul-americano. Usando uma paleta de cores intensa, ela apropria-se de elementos místicos como o tarô e a astrologia para traçar paralelos com figuras e cenas de impacto da América Latina, ritualizando e transpondo para seu universo onírico questões sociopolíticas, como as tradições dos povos originários, o papel da mulher hoje e a preservação do meio ambiente, entre outros.

Obra sem título (2021) de Marina Perez Simão (divulgação)

Marina Perez Simão (1980, Vitória, ES)

Os campos cromáticos saturados das pinturas quase-abstratas, quase-paisagísticas de Marina Perez Simão sugerem cenários ao mesmo tempo naturais e surreais. Diante das obras da artista, os sentidos perdem o dado racional a cada novo olhar, sem poder confirmar se o que está representado é de fato uma paisagem ou aglomerados de cor intensa. Pudera: existe céu roxo ou montanha azul? Os deslocamentos da cor esperada na representação de uma possível realidade trapaceiam as possibilidades de classificação. A ausência de título das obras é outro dado de incerteza.

Everything has already disappeard (2022), de Rebecca Sharp (foto Everton Ballardin)

Rebecca Sharp (1976, São Paulo, SP)

A delicada estilização e o colorido esmaecido emprestam ao surrealismo de Rebecca Sharp uma aura de suspensão no tempo e espaço, em que passado e futuro se encontram para afirmar a desconstrução das certezas do presente. Dentro da semântica dos pequenos elementos elencados em cada tela, ora reconhecíveis, ora pequenas abstrações que sugerem uma presença não identificável, a artista desenha um agora que se recolhe em si mesmo, sem contato ou compromisso com o real. Os títulos dos trabalhos esboçam narrativas incompletas, como Everything has already disappeared e Harmony in the hidden routes.

Clareira (2022), de Sandra Mazzini

Sandra Mazzini (1990, São Paulo, SP)

Nunca a natureza foi tão frondosa, lisérgica e fragmentária como nas pinturas de Sandra Mazzini. Com o uso de cores intensas em contraste com folhagens das mais diferentes espécies vegetais, a artista cria em óleo e acrílica sobre tela um universo em que a flora venceu e, em todo seu poder, invade espaços arquitetônicos indefinidos e indefesos, nos quais a presença humana não dá as caras, pois parece não existir. Dentro dessa realidade distópica (ou utópica?), Mazzini imprime uma exuberância vegetal que parece se reproduzir ao infinito quando inserida em inúmeros pequenos quadrantes.

O ninguém usa o god helmet e cega Polifemo sob o auxílio de Iemanjá (2012), de Thiago Martins de Melo (divulgação)

Thiago Martins de Melo (1981, São Luis, MA)

O universo em desencanto de Thiago Martins de Melo vale-se de cores potentes e do deslocamento funcional e espacial de figuras às vezes reconhecíveis (como entidades religiosas), às vezes coloquiais em cenários cósmicos e narrativas pra lá de excêntricas, confirmadas por títulos como O ninguém usa o god helmet e cega Polifemo sob o auxílio de Iemanjá e Resistência Carnaval. Além de pintar, Melo cria vídeos, objetos e esculturas inconfundíveis em seu léxico visual, que alia a iconografia de religiões de matriz africana, como vodu e candomblé, a ícones da cultura de massa para falar do estado de coisas da atualidade.

INTERNACIONAL 

Esculturas em madeira e mármore de Alma Alley (divulgação)

Alma Allen (1970, Heber City, EUA)

De contornos minimalistas e orgânicos, as esculturas do estadunidense Alma Allen sugerem corpos fluidos e naturais, ainda que de fato não sejam representações figurativas de nenhum organismo conhecido. Essa busca formal por estruturas etéreas e elementais, por meio da manipulação de materiais como bronze, madeira, mármores e obsidiana, entre outros, remete à comunhão espiritual com as formas naturais encontradas pelo artista em seu muitos lares: o mórmon estado de Utah, cortado por suas montanhas; a desértica Joshua Tree, na Califórnia; e Tepoztlán, cidade no México onde o artista trabalha atualmente.

Imagem sem título (2022-23), feita por Bennett Miller por meio do gerador de imagens Dall-E (divulgação)

Bennett Miller (1966, Nova York, EUA)

Diretor dos famosos Capote (2005), O Homem que Mudou o Jogo (2011) e Foxcatcher (2014), o cineasta Bennet Miller passou os últimos cinco anos pesquisando Inteligência Artificial para um documentário ainda não finalizado. Como resultado colateral, ele usou IA para desenvolver uma série de imagens fantasmagóricas, com ares de registros sobrenaturais da virada do século 19 para 20. Em exibição na Gagosian Madison Avenue, as impressões em p&b criadas pelo gerador de imagens Dall-E (batizado em referência a Salvador Dalí e ao robô da animação da Pixar Wall-E, de 2008), sugerem um mundo espectral e sombrio.

Joani Tremblay, Untitled (Sunset Peaches), 2022 (divulgação)

Joani Tremblay (1984, Montreal, Canadá)

Emoldurada por formas geométricas que se assemelham a portais para outras dimensões, a natureza surge em cores histriônicas e vibrantes na obra da jovem pintora canadense Joani Tremblay. Graças à variação cromática subversiva e à composição, que posiciona imensas paisagens naturais em fusão com elementos abstratos e detalhes vegetais, a artista se esquiva de uma representação realista para criar um universo altamente surreal. Nos óleos sobre tela da artista, a presença humana é apenas sugerida, em títulos como Paper Folds Around Your View (2021), incluindo o espectador como a personagem oculta dessa narrativa fantástica.

Leo Villareal, Pietersite Nebula, 2021 (divulgação)

Leo Villareal (1967, Albuquerque, EUA)

O norte-americano Leo Villarreal é outro artista que aposta na tecnologia para criar mundos paralelos e oníricos, onde os sentidos do observador são seduzidos ao ponto de a ilusão ser real. Considerado o “escultor das luzes”, o artista utiliza LEDs em instalações e esculturas cujas dimensões variam entre o doméstico e o colossal, como as intervenções luminosas em pontes do Rio Tâmisa (Londres, Inglaterra, 2021) e na Bay Bridge, em San Francisco (2013, EUA). As esculturas e bidimensionais em exibição na Pace Gallery (NY) trazem para a intimidade jogos de luzes que ali criam galáxias luminosas e coloridas em constante movimento.

Loie Hollowell, Boob Wheel in blue and yellow, 2020 (divulgação)

Loie Hollowell (1983, Woodland, EUA)

Como conjugar o corpo feminino com um universo disruptivo constituído por formas geométricas? Por incrível que pareça, é essa a síntese do trabalho da pintora estadunidense Loie Hollowell. Seu léxico visual abusa de azuis, cinzas e marrons na geometrização dos elementos do corpo da mulher para criar símbolos potentes de gestação, nascimento, fecundidade e sexualidade. Seios, vagina, nádegas, ventre e útero são vertidos para formas cilíndricas, elementos tridimensionais aplicados sobre a tela e fractais que simulam ciclos em movimento, numa estética que remete a um futuro retrô, semelhante ao desenhado pelo construtivismo e o concretismo. 

Mimi Lauter, Untitled (Devotional Flower Landscape), 2018 (divulgação)

Mimi Lauter (1982, San Francisco, EUA)

Uma paleta de cores em que tons orgânicos se misturam a laranjas, amarelos e azuis radioativos transformam a pintura fluida de Mimi Lauter numa epopeia sutil do mundo natural rumo ao espiritual. Não à toa, uma das influências de sua obra é Hilma Af Klint. As abstrações de Lauter acumulam camada sobre camada de materiais distintos, como óleo, pastel seco e pastel oleoso, para imprimir sobre papel ou tela imagens que parecem ser partes de uma cosmologia que remonta ao início dos tempos até o futuro. A atemporalidade do tratamento orgânico dos elementos está em mostra na White Cube Bermondsey (Londres, Inglaterra).

Nandipha Mntambo, Entrar, 2011 (divulgação)

Nandipha Mntambo (1982, Mbabane, Essuatíni)

A força dos elementos naturais e da essência feminina ganham representação no couro e boi moldado como corpos fantasmáticos e flutuantes no trabalho de Nandipha Mntambo. Apresentadas isoladamente ou em conjunto, essas formas femininas impõem-se como entidades não redutíveis a seu gênero e identificadas com a potência da natureza. Além das esculturas, a artista pinta com formas e cores orgânicas e insere a si mesma em fotografias que confundem as representações de gênero e, ao mesmo tempo, invocam divindades pagãs mescladas a animais. Nas obras de Mntambo, o ser humano é natureza, animalidade e mistério.

Zoe McGuire, Relatives, 2022 (divulgação)

Zoe McGuire (1996, Albany, EUA)

As pinturas a óleo e os desenhos a pastel da estadunidense Zoe McGuire aproveitam da saturação da cor para criar paisagens cósmicas e naturais, que incorporam uma vocação construtiva e modernista na geometrização de formas orgânicas e de relevos. Pela destituição dos detalhes realistas e a estilização dos traços, McGuire se insere na atual corrente pictórica que reatribui à natureza uma posição privilegiada e sagrada com a reinvenção de sua economia cromática e o estabelecimento de uma estranheza formal que, antes de antagonizá-la, a transforma em uma ambiência atemporal e espiritualizada.

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