Como e quando nasceu a ideia de arte moderna?

Para abrir a temporada dedicada ao centenário da Semana de Arte Moderna, Julia Lima explica como e quando nasceu a ideia de arte moderna na Europa e como esse movimento influenciou o início do modernismo brasileiro

O que é arte moderna? Como separamos e definimos os termos moderno, modernismo, modernidade? Como e porque esses movimentos chegam no Brasil? 

Para começar, é preciso entender melhor o termo “moderno”: utilizado em latim desde o século 5 D.C., a palavra “moderno” é usada em todos os campos do conhecimento, ganha novos contornos em diferentes períodos históricos, e acaba desenhando-se como essencial na perspectiva da Revolução Industrial, como intrínseca às reflexões sobre o Capitalismo, e, claro, aparece nos estudos culturais, da arquitetura, da literatura, etc. O adjetivo “moderno” designava um recorte temporal – o tempo era moderno, criando uma distinção com o “antigo”, ou “passado”. Historicamente falando, o termo “moderno” é usado para designar a Idade Moderna, que se sucede à Idade Média.

A noção de uma “arte moderna” surge no meio do século 19, lá por 1850, 1860. Nesse tempo passamos pelo auge da Revolução Industrial, que nasce na Inglaterra e se espalha pela Europa e depois pelos Estados Unidos, transformando os métodos de produção de bens de consumo, da produção de energia, etc. A arte moderna surge em uma conjuntura cheia de elementos complexos: entre fim do séc. 18 e início do 19 se estabelece plenamente e se proliferam as grandes academias; os críticos; e, as primeiras exposições. É nesse momento também que  artistas e artesãos se distinguem.

Salon d'arts
Salon d’arts

A primeira Académie d’Art na França foi fundada em 1648 e os Salões foram criados no século seguinte, como exposições pensadas para exibir as obras dos professores, alunos e membros das academias. Essas exposições foram chamadas de “Salão” porque inicialmente eram organizadas no Salon d’Apollon, no Museu do Louvre. Para expor em um Salão, um jovem artista precisava ser recebido e aprovado pela Académie, submetendo sua obra ao júri. Esse sistema de seleção por júri, que caracteriza um salão de arte até os dias de hoje, foi introduzido no Salão de Paris em 1748. Os salões eram as únicas exposições oficiais organizadas na França, mas, aos poucos, passaram a ser questionados como espaço legítimo por artistas que se opunham ao sistema das academias.

Jean-Auguste-Dominique Ingres,
Jean-Auguste-Dominique Ingres,
Jean-Auguste-Dominique Ingres,
Jean-Auguste-Dominique Ingres,

Os artistas acadêmicos, principalmente no período em torno da Revolução Francesa, começaram a ser vistos como conservadores, anacrônicos, tradicionalistas demais. O principal mestre conservador do período foi Jean-Auguste-Dominique Ingres, um discípulo do artista Jacque-Louis David, fielmente dedicado aos clássicos, rígido quanto aos princípios da pintura. Ingres desprezava o improviso, o acaso, o espontâneo, e reiteradamente reforçava a ideia de disciplina nas suas aulas de desenho de modelos vivos. Apesar de ser muito invejado por sua proeza técnica, pela precisão dos traços, formas e reprodução da figura humana, muitos achavam sua perfeição insuportável.

Menina Órfã no Cemitério, Eugène Delacroix
Menina Órfã no Cemitério, Eugène Delacroix

Já o grande rival de Ingres era Eugène Delacroix, que não aceitava os padrões da academia e dizia não ter paciência para as constantes referências à produção de gregos e romanos. Nascido em 1798, Delacroix era mais um dos revolucionários pintores de sua época, acreditando que a cor era infinitamente mais importante que o desenho. Ele também defendia que a imaginação era superior ao saber acadêmico, ou seja, o ensino baseado nas aulas de modelo vivo era falho! Mas, Delacroix continuava ligado à tradição romântica francesa, foi uma espécie de líder dos Românticos no país, inspirado por Peter Paul Rubens.

A liberdade guiando o povo, Eugène Delacroix
A liberdade guiando o povo, Eugène Delacroix

No caso de Delacroix, sua obra mais conhecida e mais influente foi A liberdade guiando o povo, de 1830. A escolha de técnica e o assunto divergem radicalmente da academia francesa do período, focada no estilo neoclássico, cujo principal embaixador era o próprio Ingres. Vale lembrar, ainda, que além de engessados modelos para a técnica da pintura, as academias também definiam os temas que poderiam ser pintados: cenas heróicas, o passado clássico ou bíblico eram considerados aceitáveis e nobres, restritos aos gênios; a paisagem e a natureza morta eram considerados gêneros inferiores; e, pintar camponeses ou trabalhadores era simplesmente impensável. Foi exatamente o que Delacroix fez em A liberdade guiando o povo – ele não representa os heróis da Revolução, mas o povo. 

Gustave Courbet
The Winnowers, Gustave Courbet

Outro grande rival do academicismo foi Gustave Courbet, talvez o primeiro artista “rebelde” de que temos notícia. Ele foi associado ao que chamamos de “Realismo Francês”. Se a academia prezava a pintura histórica, como se este tema fosse o grande chamado dos artistas gênios, Courbet desprezava este gênero. Como protesto contra as convenções da época, tentava chocar a burguesia e pregava a sinceridade artística acima de tudo. Ele acreditava que deveria pintar o seu entorno, como os mestres da era de ouro holandesa fizeram no século 17. O público que frequentava os Salões passou a interessar-se mais pelo novo estilo realista, abandonando o já decadente Romantismo. 

O encontro, Gustav Courbet
O encontro, Gustave Courbet

Courbet tornou-se uma espécie de celebridade, chamado de gênio, de socialista terrível e de selvagem.Comprometido em pintar apenas o que poderia ver, ele retratatou trabalhadores e camponeses, com um estilo já muito singular. Além disso, lançava mão de grandes formatos, algo que antes era reservado apenas aos grandes temas históricos ou religiosos.Durante a década de 1860, Courbet pintou muitos nus, erotizados para a época, tendência que culminou na pintura L’Origine du monde, de 1866, que mostra apenas a região púbica da mulher, e que não foi exibida publicamente até 1988.

A origem do mundo, Gustave Courbet
A origem do mundo, Gustave Courbet

Depois de Delacroix e Courbet, o grande nome que parece inaugurar o que vamos chamar de “arte moderna” ou “vanguardas modernas” é Édouard Manet. Levando a cabo o que Courbet havia desencadeado, os artistas do meio do século 19 concluíram que a arte ‘tradicional’ havia encontrado meios de representar o homem e a natureza de forma muito ‘artificial’. 

Édouard Manet
Édouard Manet e outros impressionistas passam a pintar do lado de fora do ateliê

O ensino se baseava, por exemplo, em modelos vivos que posavam no ateliê, sob luz artificial e em poses paradas, baseando a pintura sempre nos contrastes de luz e sombra controlados. Sair do ateliê e ir pintar junto à natureza implicava numa outra incidência do sol, uma luz ‘estourada’, com contrastes mais violentos. Manet liderou, portanto, uma revolução na maneira de pintar – a reprodução das cores, em primeiro lugar, foi subvertida. Ele percebeu que, ao olhar a natureza ao ar livre, não vemos cada objeto individualmente, mas uma mistura de cores e matizes. Neste período, suas pinceladas eram “soltas”, os detalhes bem simplificados e não havia meios tons, tudo era contraste.

 Os corpos reais não são arredondados e modelados como as esculturas gregas, e se mexem, respiram. E mais: desde o Renascimento, a pintura tendia a “aperfeiçoar” a natureza, corrigindo certos desvios do olhar. Mas os artistas modernos perceberam que precisavam confiar nos que seus olhos viam, nas coisas como elas eram. Ainda no estilo realista de Courbet, o assunto de Manet girava em torno de ciganos, cantores, pessoas em cafés, mendigos, etc. raramente pintava temas religiosos ou históricos.

Piquenique na relva, Édouard Manet
Piquenique na relva, Édouard Manet

 Piquenique na relva, de 1863, é uma pintura de força incrível. A modelo e o homem sentado ao seu lado olham diretamente para o espectador. A modelo segura o rosto com a mão direita e não se inibe de sorrir ligeiramente, exibindo uma aparência segura e plena de sensualidade. Manet pintou a cena usando como modelos Victorine Meurent, sua esposa Suzanne, seu futuro cunhado Ferdinand Leenhoff e um de seus irmãos. Victorine foi modelo de várias obras de Manet, inclusive a famosa Olympia.

Olympia, Édouard Manet
Olympia, Édouard Manet

Segundo o crítico norte-americano Clement Greenberg, “as telas de Manet tornaram-se as primeiras pinturas modernistas em virtude da franqueza com a qual elas declaravam as superfícies planas sob as quais eram pintadas”. As pinturas de Manet, na década de 1860, lidam com vários temas relacionados à visão baudelairiana de modernidade e aos tipos da Paris moderna: boêmios, ciganos, burgueses empobrecidos etc. Além disso, obras como Piquenique na relva desconcertam não apenas pelo tema (uma mulher nua, num bosque, conversa com dois homens vestidos), mas também pela composição formal: as cores planas sem claro-escuro nem relevos; a luz que não tem a função de destacar ou modelar as figuras; a indistinção entre os corpos e o espaço num só contexto.

A nudez naturalizada na obra chocou muito o público parisiense, e a obra de Manet declarava a profunda e escandalosa liberdade do pintor, que várias vezes escandalizou os espectadores dos Salões. Essa obra foi submetida ao Salão no mesmo ano, mas foi rejeitada pelo júri, assim como 2/3 das obras submetidas naquela edição de 1863. Acontece que, pela primeira vez, artistas se mobilizaram, revoltados pela exclusão massiva do salão oficial. Isso levou à criação de um evento paralelo, chamado de Salon des Refusées, ou Salão dos Recusados. O público fazia fila para visitar essa mostra paralela, não tanto por paixão pelos artistas, mas sim pela graça de zombar dos trabalhos “modernos”. As obras de Manet provocaram risos desconcertantes no Salon, escandalizaram a imperatriz, foram consideradas atentado ao pudor.

Salon des Refusées
Salon des Refusées

Os artistas passam, portanto, a traduzir em suas obras a sensação visual imediata, independentemente, até em oposição, de toda noção convencional das academias. Assim nasce a primeira “vanguarda” – aquilo que está à frente – o impressionismo. O movimento afirma o valor da sensação: o artista traduz as próprias sensações, renunciando a qualquer regra, padrão ou modelo, exercendo uma total liberdade. Uma arte que se desenvolve pela autenticidade das sensações e fenômenos é intrinsecamente moderna, porque implica o desafio à autoridade. Por isso também que é a partir deste momento que inúmeros novos movimentos surgem: o Fauvismo, Expressionismo Alemão, Futurismo, Cubismo, Suprematismo, Dadaísmo, Surrealismo, Neoplasticismo. Tratam-se de vanguardas marcadas não tanto por nacionalismos ou regionalismos, mas por um desejo de “arte pura”, a arte pela arte, que não atende aos preceitos ou demandas de uma Igreja, de um Estado, ou de uma Academia. 

Nos próximos capítulos vamos ver a repercussão desse pensamento no Brasil. Mas é importante ressaltar aqui que, a partir deste momento, os artistas brasileiros passam a ter uma relação com esse cenário de forma pontual, porém significativa. Com o nascimento da Academia Imperial de Belas Artes, em 1891, todo sistema de arte começou a se desenvolver por aqui. Nessa época, haviam premiações de artistas que ganhavam, juntamente, viagens para Paris para estudar. É claro que todo turbilhão que agitava os ateliês e exposições da Europa os influenciava. Mas qual foi o resultado dessa mistura de referências quando eles voltavam? Fique de olho nos próximos episódios para descobrir!  

Tarsila do Amaral
Tarsila do Amaral
Candido Portinari
Candido Portinari
Tarsila do Amaral
Tarsila do Amaral
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