Conheça três projetos de Letícia Ramos que dialogam com o nosso tempo

Conhecida por pesquisar e construir diferentes aparatos fotográficos em seu ateliê, Letícia usa a história da imagem e referências de ficção científica para investigar fenômenos naturais, históricos e sociais

A resistência do corpo, de Letícia Ramos
A resistência do corpo, de Letícia Ramos

Conhecida por trabalhar entre a ciência e a ficção, Letícia Ramos investiga fenômenos naturais, históricos e sociais por meio de aparatos fotográficos que ela própria constrói em seu ateliê. É uma fotógrafa-cientista, uma viajante que atravessa os séculos revirando as várias aventuras das invenções e das formas de representar o mundo. “Gosto de observar outros tipos de fotografia que não aquelas usadas de forma poética para a recordação”, explica a artista.

Não é à toa que muitas de suas fotografias parecem abstratas, desafiando a os códigos que estamos acostumados a enxergar. Ela nos ensina a ver novamente e de outra forma, num cruzamento entre ciência e artesanato, entre conhecimento e experimentação, passado e futuro.  Em tempo de incertezas, o gênero da ficção científica, tão presente no trabalho de Ramos e de Luiz Roque, por exemplo,  pode ser um alento ao nos lembrar que temos o poder de formular outras possibilidades para o futuro. Se o futuro é uma projeção ou ficção, que tipo de narrativa queremos projetar? Como a arte pode nos ajudar a visualizá-los?

Separamos aqui três de seus projetos que dialogam com nosso tempo. 

Null Island
Null Island

Null Island (2020)

A Ilha Nula está localizada no marco zero do mundo, onde o meridiano principal e o equador se cruzam. Este lugar hipotético, marcado por uma bóia no meio do Atlântico, existe apenas na matemática e na cartografia: foi criado para que outros lugares pudessem ser indexados em um mapa mundial. Este local e, portanto a ciência, é pano de de fundo para uma história criada por Letícia que fala sobre isolamento e solidão.

Tudo acontece, supostamente, numa estação meteorológica na Antártica: uma cientista humana e uma robô conversam sobre um objeto misterioso que apareceu na paisagem por causa do degelo polar. Durante o filme, é possível acompanhar a percepção da cientista sobre um estranho fenômeno: uma esfera metálica não pode ser capturada por câmeras e é visível apenas aos olhos orgânicos de humanos e animais. O robô – forma de inteligência artificial que controla as câmeras e vive nela há muito tempo – não consegue detectar a esfera e essa divergência sobre o que está sendo visto desencadeia conversas mais subjetivas e existenciais entre cientista e robô. Apesar da obra ser uma espécie de ficção científica é possível detectar frases no diálogo que fazem referência direta ao tempo que vivemos. A cientista humana tenta fotografar o objeto e ele não aparece, então ela anuncia “Isso não significa que ele não existe”. A artista aqui acaba questionando a veracidade do mundo da imagem que ganhou ainda mais potência no mundo isolado. E por falar em solidão, a robô menciona que deve ser difícil para a humana ficar tanto tempo sozinha e ela mesma se sente bastante confortável em isolamento. 

Null Island, de Letícia Ramos
Null Island, de Letícia Ramos

A temporalidade na Ilha Nula é fluida, indo e voltando; presente e passado referem-se a um futuro hipotético que depende das escolhas interativas do espectador. O tempo atual aparece na obra por meio de dados produzidos por um sismógrafo live streaming, que nos informa sobre o estado do solo onde vivemos.

Null Island, de Letícia Ramos
Null Island, de Letícia Ramos
Null Island, de Letícia Ramos
Null Island, de Letícia Ramos

Feito durante a pandemia, o filme foi construído pela artista por meio de registros de 3 webcams locais, maquetes elaboradas na casa da artista e imagens que ela havia feito para outro trabalho quando esteve na Antártica. “Eu queria entender como seria o deslocamento desse objeto e então, pedi ajuda a algumas pessoas que trabalham com gelo de drink para criar cubos de gelos gigantescos com algumas peças dentro”, explica a artista conhecida pela pesquisa de processos e diferentes formas de registros. 

A resistência do corpo, de Letícia Ramos
A resistência do corpo, de Letícia Ramos

A resistência do corpo (2018)

Esta série de fotografias, criada especialmente para a abertura do novo IMS na Avenida Paulista, na mostra CORPOACORPO, parte de pesquisas feitas na era da Revolução Industrial, período em que a fotografia foi utilizada para apoiar teses científicas, para aprimorar a “máquina mundial” e aumentar a capacidade produtiva. 

O engenheiro americano Frederick Winslow Taylor ficou conhecido por estudar o movimento dos trabalhadores ingleses para que pudessem ser aprimorados e, com isso, mais eficientes. Em 1916, no melhor exemplo do taylorismo, o casal Frank e Lillian Gilbreth publicou o artigo “The Effect of Movement Studies on Workers”: a dupla usou a fotografia e a animação para estudar os ciclos de trabalho e descobrir como reduzi-los a sequências de gestos mais curtas e eficientes, reduzindo a fadiga. “A partir da fotografia eles conseguiam mapear o corpo e os movimentos para que o processo do trabalho fosse mais eficiente, é como se estivessem coreografando o trabalhor”, explica a artista. 

A resistência do corpo, de Letícia Ramos
A resistência do corpo, de Letícia Ramos
A resistência do corpo, de Letícia Ramos
A resistência do corpo, de Letícia Ramos

A partir do repertório visual de estudos científicos de eficiência feitos pelo casal Gilbreth, Letícia examinou os movimentos dos corpos em manifestações que marcaram o país na época da mostra. Mergulhou no estudo de próteses de partes do corpo e as usou para fazer testes do impacto de uma mão fechada ou um jato d’água, por exemplo. Ou ainda: analisou qual é o movimento feito para arremessar um objeto ou fazer um post. Somado à pesquisa das manifestações na Avenida Paulista, ela ainda analisou os gestos do dedo deslizando na tela do celular para mandar mensagens de texto, fotos ou vídeos no calor das revoltas. “O que seria esse super humano que precisava se adaptar para o embate?”,  pergunta a artista.  “O ativismo digital torna a ponta do dedo quase tão poderosa quanto um punho fechado”, completa. 

A resistência do corpo, de Letícia Ramos
A resistência do corpo, de Letícia Ramos

O resultado é uma série de imagens robóticas quase abstratas sobre agressão e defesa. “Sempre gostei de pesquisa a fotografia que não é poética e não é exatamente o registro de uma recordação, como a radiografia por exemplo. Registrei esses corpos, então, com filme da radiografia na câmara – o que é bastante simbólico uma vez que estamos acostumados a ver essa linguagem para o estudo corpo humano”, revela.  

 A história universal dos terremotos
A história universal dos terremotos , de Letícia Ramos

 A história universal dos terremotos (2017) 

A história universal dos terremotos nasce da análise de um fato histórico: Em 1775, Lisboa foi destruída após sofrer um terremoto, seguido de um tsunami e um incêndio. Este evento catastrófico teve um efeito profundo no país. A artista parte desta tragédia para criar uma história de ficção a partir da própria experiência do que significa um terremoto ou um acontecimento tão dramático capaz de mudar a estrutura base de uma sociedade. 

O terramoto atingiu Lisboa em 1775, e a fotografia foi inventada em 1835. E foi a falta de ‘evidências fotográficas’ que encorajou a artista a investigar os relatos da época por meio de histórias contadas por aqueles que faziam questão de narrar e representar visualmente o que viram. Ramos captou, então, o movimento de objetos em queda usando um processo de fotografia estroboscópica em microfilme  – método/mídia muito usado em pesquisas científicas.  “As imagens, de natureza abstrata, refletem a perda de foco que imaginamos em um evento desse tipo, onde tudo perde seus contornos nítidos e é abandonado ao seu destino natural.”, descreve o curador Alvaro Rodríguez Fominaya. Numa exposição no Pivô, Letícia Ramos seguiu com a pesquisa criando uma instalação que simula o funcionamento de um sismógrafo registrando as vibrações do Edifício Copan em um rolo de filme 16 mm, projetado simultaneamente no espaço. 

 A história universal dos terremotos , de Letícia Ramos
A história universal dos terremotos , de Letícia Ramos

“Este trabalho fala muito sobre resiliência, reverberação, e também sobre a ideia de ruptura. Não é possível prever um terremoto e ele transforma tudo. É um fenômeno sobre reorganizar o mundo. Na mitologia japonesa, o deus Kashima é o encarregado de proteger Namazu, um bagre gigante, mantendo-o dentro de uma caverna de pedra nas profundezas da Terra. Quando Kashima baixa a guarda, o peixe escapa e o movimento de sua cauda causa terremotos em todo o planeta. Dizem que ele só se mexe quando a sociedade está desigual, então há um terremoto para todos voltarem para o mesmo patamar. É como se a natureza precisasse se manifestar para reequilibrar o planeta”, explica a artista que busca investigar as causas e efeitos socioeconômicos, psicológicos e políticos dos terremotos. Ou seja: Terremoto é um símbolo de mudanças e renovação.  Apesar do trabalho ser relativamente antigo, dialoga com o momento atual apontando para as necessárias e possíveis mudanças depois que sobrevivermos a esse grande terremoto de incertezas. 

 A história universal dos terremotos , de Letícia Ramos
A história universal dos terremotos , de Letícia Ramos
 A história universal dos terremotos , de Letícia Ramos
A história universal dos terremotos , de Letícia Ramos
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