Dalton Paula conta como constrói os retratos expostos no MASP

Artista representa lideranças negras a partir de pesquisas feitas em Quilombos, criando uma espécie de retrato falado da nossa ancestralidade

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Dalton Paula
Dalton Paula

Doce, sensível e cativante, Dalton Paula pratica capoeira angola e frequenta os terreiros de Goiânia, onde vive e trabalha. Apaixonado por cerâmica, pelas festas populares e rituais afro-brasileiros, ele já é conhecido por elaborar performances, instalações e pinturas que buscam processos de cura de uma enfermidade cruel: o apagamento de personagens negros, epecialmente as lideranças de revoltas contra a estrutura escravocrata. 

Na mostra Dalton Paula: retratos brasileiros, ele apresenta, até 30 de outubro de 2022, uma série de 30 retratos, sendo 25 inéditos no Brasil, sob curadoria de Adriano Pedrosa, Glaucea Britto e Lilia Schwarcz. A ideia? Pintar personalidades da nossa história apagadas ou nunca retratadas, trazendo à tona a beleza, dignidade e nobreza que lhes cabem.

Alufá Rufino,2020, Dalton Paula; foto: Joerg Lohse
Alufá Rufino,2020, Dalton Paula

A construção dos retratos parte de dois caminhos: de um lado, ele estuda as informações passadas por Schwarcz, historiadora e parceira, sobre a vida e origem desses afro-brasileiros para pincelar (literalmente) características ideológicas e referências para as vestimentas e penteados de seus personagens; do outro, ele busca as referências físicas, sabedorias e heranças comportamentais de quilombos pelo país. Ele brinca: “Faço uma espécie de retrato falado da ancestralidade brasileira”. 

Durante o lockdown Dalton ficou preso em Nova York quando finalizou 24 dessas pinturas, em 80 dias. Foi tudo vendido nos EUA, sendo seis compradas pelo MoMA. “Chegou uma hora que eu falei para a minha galerista: vou parar de ler o jornal, se o mundo acabar você me avisa! Mas foi bom porque pude ficar concentrado neles, e eu não me senti sozinho, esses personagens têm uma presença muito forte”, explica. Abaixo ele conta, especialmente para o AQA, como foi o processo de elaboração das obras. 

1. O Lima Barreto foi o primeiro retrato? Foi nesse momento que começou a surgir a série? 

Isso. Lilia Schwarcz fez a biografia dele e ela tinha um problema porque só existiam duas imagens dele: uma dele internado num hospital psiquiátrico por causa do alcoolismo; na outra ele estava num julgamento e aparece super formal – o que não era uma postura característica dele. Além disso existiam caricaturas que eram hiper estereotipadas. Outro problema dessas imagens é que as fotografias da época tinham aquele problema do embranquecimento – afinal de contas, um escritor tão poderoso como ele não podia ser negro. Aconteceu com ele o mesmo que aconteceu com  Machado de Assis. Então o meu desafio era trazer o tom de pele e o cabelo crespo – que é outra marca importante. 

2. Depois o MASP encomendou Zeferina e João De Deus Nascimento, certo?

Quando me chamaram para fazer a Zeferina e João De Deus Nascimento fiquei pensando o desafio de alcançar esse Brasil profundo cujas imagens são raras. Fiquei olhando para fotos históricas e oficiais desses corpos negros e me deu vontade de trazer mais subjetividade aos personagens, me incomodava muito as roupas rasgadas, os pés descalços, feição tensa. É uma condição super complexa. 

A Lilia me ajuda trazendo a biografia de cada retratado. Mas fico pensando muito sobre a ancestralidade e como a herança desses personagens chega nos dias de hoje.

Pinturas de Dalton de Paula, em Histórias Afro-atlânticas
Zeferina e João De Deus Nascimento

3. Onde você se alimenta?

Observando as festas populares e visitando os Quilombos porque muitos desses personagens lutaram em rebeliões, exigiram seus direitos em lugares onde os ciclos econômicos eram baseados na escravidão – como canaviais e plantações de tabaco e lugares de garimpo. Então eu vou nesses lugares na busca dos rastros dessas pessoas, procuro entender o que ficou no imaginário e vou construindo uma espécie de arqueologia nesse campo expandido. Depois uso essas informações nos retratos, criando uma espécie de retrato falado da ancestralidade brasileira. 

4. O retrato de Ventura Mina foi criado para um filme sobre um escravo que liderou cerca de outros 40 em uma revolta quase desconhecida. É a primeira vez que você usa a folha de olho, certo? Por que você usou esse elemento na cabeça dele? 

Sim. A folha de ouro 22 quilates faz referência aos reis e rainhas que vieram da África escravizados. A cabeça está ligada a Ori [deus do destino] – é preciso alimentar a cabeça para cuidar do corpo e da alma. É um trabalho muito conectado com a espiritualidade, fiquei pensando em possibilidades de materializar isso: uso o recurso da pedra de quartzo (muito comum na região onde ele viveu), pois é uma pedra conhecida por ter uma propriedade amplificadora de energia. Por isso, uma pessoa que tem uma energia muito negativa nem consegue ficar na região. 

Eu fui lá nas ruínas onde foram as rebeliões e encontrei essa pedra. A energia do lugar é muito forte e a representação da pedra é uma vontade de materializar isso. Trata-se de um trabalho de ficção, uma fabulação. Mas a ideia é deixar algo materializado para as futuras gerações. 

Itamar Assumpção por Dalton Paula
Itamar Assumpção por Dalton Paula

5. Por que ressaltar o nariz usando tons mais claros?

O nariz largo é uma marca muito potente. Eu mesmo sempre tive dificuldade com o meu nariz, queria afiná-lo. Por isso uso esses tons de ocre e bege para assumir essa característica do meu corpo – quando você coloca luz, uma cor mais clara, aquele elemento vai ressaltar na composição. A ideia é de ecoar o movimento Black is Beautiful. E se você olhar as pinturas mais recentes, vai ver que o nariz está cada vez com mais textura e mais carga. A boca vai caminhando também para o mesmo sentido. 

6. Como você escolheu os fundos em tons de azul esverdeado? 

Isso é uma referência à foto-pintura que é muitas vezes usada como ex-voto para agradecer uma graça alcançada ligada à cura. O fio condutor do meu trabalho é o corpo silenciado e eu atribuo esse silenciamento a uma enfermidade. Por isso, fico buscando possibilidades de cura e me interesso muito por esses ex-votos. Inclusive, eu passo muito tempo no ateliê misturando as tintas e você pode reparar que não tem nenhum tom igual ao outro. O mesmo acontece com os tons de pele, tento usar cores diferentes para mostrar a diversidade dessas pessoas. 

Tem outra coisa simbólica: quando eu trago o verde estou fazendo uma referência, também, às plantas medicinais. Também uso muito o branco para fazer uma conexão com a medicina. 

Serena Assumpção por Dalton Paula
Serena Assumpção por Dalton Paula

7. Por falar em branco, as pinturas novas ganham fissuras brancas. Qual foi sua intenção nesse processo? 

Essas partes de pintar é também uma vontade de relacionar o meu trabalho com o de um arqueólogo. Sinto como se eu tivesse colecionando partes de uma urna que ainda está incompleta. Aí eu deixo o trabalho de completar essa ficção para um próximo artista. Essas linhas nos fazem refletir também sobre caminhos: será que os caminhos que estamos tomando neste período de pandemia e crise política são os corretos? 

Eu não quero pensar o retrato como gênero de pintura, isso já está sendo feito há muito tempo. É mais do que isso, vejo todas essas pinturas como documentos que preservam a existência desses líderes importantes. É uma ficção, uma fabulação. A ideia primeira não é fazer algo fidedigno, é mais uma reflexão sobre quem é aquela pessoa e porque não existem retratos dela. Meu trabalho talvez seja o primeiro, e por isso deixo os espaços em branco. Depois virão outros artistas para trazer outras questões. Por isso deixo esses espaços em branco. O buraco é tão fundo, existe um hiato e um silenciamento tão imenso que coisas básicas ainda não estão resolvidas.

Você tem, por exemplo, a revolta do Haiti que diz “não” para o sistema escravocrata e estremece toda estrutura da América. Existiam os retratos das lideranças que foram destruídos e invisibilizados. O apagamento desse tipo de documento era muito comum para anular, matar mesmo, a existência dessas pessoas. Eu quero retomar isso e deixar um registro para os próximos artistas. 

8. É interessante pensar que o trabalho do arqueólogo é de cavar e descobrir rastros de histórias e pessoas. Você faz isso e, depois, para reconstruir essa história, você usa uma sobreposição de camadas no processo, causando essa sensação de profundidade não só da matéria mas da psique do personagem.  

Exatamente. 

9. Você sempre usa duas telas para fazer os retratos, certo? Qual é o motivo?

Isso. São duas telas fixadas. Funciona como uma fissura, um incômodo. É um espaço onde algo pode ser escondido, mas também onde algo pode nascer. Isso também está ligado ao entendimento do processo como arqueologia. Vou juntando partes ou pedaços de quem seriam essas pessoas e como seriam seus rostos. Mas não com a totalidade. É uma referência à complexidade do que é resgatar as histórias dessas pessoas. 

10. Como foi o processo de seleção dos personagens?

Quando eu entendi que os retratos iriam virar uma série, uma das exigências que eu coloquei é que pelo menos 50% dos retratados fossem mulheres porque quando você vai no Quilombo, fica muito claro que são sociedades muito matriarcais. Elas são as lideranças desse espaço. Também queria incluir pessoas que contemplassem as cinco regiões brasileiras. 

11. Muitas entre as poucas referências que temos dessa mulheres negras estão ligadas à ideia das joias de crioula, mas você não coloca nenhum acessório nelas. Por quê? 

Eu fiz isso de propósito para mostrar a ausência social delas. Quando não incluo posses, estabeleço o foco de atenção do espectador na subjetividade e no olhar, que é um dos elementos mais importantes dos retratos. Por isso eu escolhi pintá-los de frente e a curadoria resolveu pendurar as telas de forma que o olhar do personagem encontre o do visitante. O olho, na verdade, é uma das últimas coisas que eu faço porque qualquer coisa que colocamos na tela influencia todo o resto. E o olho é mesmo a janela da alma! 

12. Quais são as principais diferenças entre as telas pintadas em 2020/2021, em Nova York e estas novas?

A pintura está exigindo mais tempo e mais camadas – vou trabalhando da forma como ela está pedindo. Aumentei a textura e aproximei o close para evidenciar mais o rosto e as expressões da pessoa. As cores pastéis vão ficando mais vivas!

Outra diferença aparece no boca que está mais iluminada, com esses frisos. É um convite para se aproximar e mergulhar nos personagens.

13. E os cabelos? Mudaram também… ganharam mais detalhamento e protagonismo. 

Sim, o processo mudou. Eu passo seis camadas de tinta na tela e vou traçando linhas bem fininhas, depois vou puxando fio por fio no pincel. Há um cuidado diferente do resto da pintura, pois a cabeça, o ori, precisa ser cuidado para alimentar a alma. Antes tinha um pouco de massa, só agora que eu puxo cada fio isoladamente. 

14. Eu sei que é difícil escolher, mas qual é o seu preferido?

Gosto muito do Manoel Congo, pois o personagem que usei como base foi o seu Badu, que mora num Quilombo em Minas Gerais e trabalha com radiestesia [ciência que tem como objetivo medir e detectar campos energéticos por meio de um pêndulo]. Ele pergunta para as plantas quais são suas propriedades medicinais e também consegue encontrar os fluxos de água sob o solo. Conversar com essas pessoas, tomar um café nesses lugares, visitar os jardins delas, escutar essas histórias, olhar no olho – tudo isso é muito importante para tocar a profundeza do rio. Sem dúvida nenhuma, se eu não tivesse encontrado essas pessoas, tivesse visto somente uma fotografia, eu não teria conseguido trazer algumas nuances. São camadas possíveis somente porque estive presencialmente com essas pessoas. Essa parte do processo é muito especial. 

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