Filmes AQA: O homem que vendeu a sua pele

Indicado ao Oscar, filme dirigido pela tunisiana Kaouther Ben Hania, sugere críticas ácidas ao mundo da arte

Tempo de leitura estimado: 7 minutos

Desde que Marcel Duchamp virou um urinol de cabeça para baixo e o expôs como obra de arte, tudo passou a ser permitido. E, de tempos em tempos, aparecem artistas querendo ser ainda mais radical que Duchamp. Se tudo que o artista toca vira ( como mágica) arte, por que não vender o ar que ele exala ou a sua própria merda? Foi o que propôs, por exemplo,  Piero Manzoni. Yves Klein vendeu a experiência de jogar folhas de ouro no rio Sena, Maurizio Cattelan vendeu uma banana!

Ready-made de Marcel Duchamp
Ready-made de Marcel Duchamp
Merda de artista, de Piero Manzoni
Merda de artista, de Piero Manzoni
Comedian Maurizio Cattelan
Comedian, de Maurizio Cattelan

Selecionado para concorrer ao Oscar de Melhor Filme Internacional, O homem que vendeu a sua pele , dirigido pela tunisiana Kaouther Ben Hania, é uma crítica ácida ao mundo da arte. Apesar de não ser um primor da sétima arte, traz muitas camadas e questões importantes que não podemos perder de vista. Baseada na ideia de basicamente tudo o que o artista toca vale ouro – como provou Manzoni – a narrativa gira em torno de um artista que tatua um passaporte num imigrante sírio e o expõe e vende como obra de arte.  O filme parece absurdo, mas se você analisar bem a História da Arte, verá que a maioria dos pontos levantados ali não são novidade, estão apenas num tom (um pouco, bem pouco) acima da vida real. 

Anthropométrie, de Yves Klein
Anthropométrie, de Yves Klein
Living Sculpture Piero Manzoni
Living Sculpture Piero Manzoni

Spoilers à parte, a primeira ideia a ser discutida é a que ponto a premissa do ready-made pode chegar. Tudo pode ser suporte para a arte? De acordo com Klein, que usou o corpo de mulheres como pincel em sua Anthropométrie; e com o Wim Delvoye, artista neo-conceitual belga que atuou porcos, sim! Tudo pode ser arte. Mas….Tudo vira obra se assinado pelo artista? Exato. Aqui vale lembrar, ainda, da série Living Sculpture, também de Manzoni: ele escreveu o próprio nome no braço do visitante, nomeando-os obras de arte, e também ofereceu um pedestal para qualquer um subir virar arte! 

Living Sculpture, de Piero Manzoni
Living Sculpture, de Piero Manzoni
Wim Delvoye e os polêmicos corpos tatuados
Wim Delvoye e os polêmicos corpos tatuados

Levando esses conceitos ao seu limite, Delvoye passou a incluir, em suas exposições,  Tim Steiner, o suíço que vendeu sua pele para tatuagens primeiro para o artista e depois para um colecionador – exatamente como acontece em O homem que vendeu a sua pele. “A tatuagem está na periferia, não participa dos debates intelectuais do mundo da arte. É tudo sobre classes. O que as pessoas chamam de ‘arte’ é o que pessoas ricas compram; o que as pessoas pobres fazem são descartadas, não podem ser chamadas de arte”, explica Delvoye. “Todos nós gostamos de coisas que achamos bonitas, e queremos estes pequenos troféus nas nossas paredes…ou no nosso corpo! Quem ama mais a arte? Essa pessoa que não conhece nenhum artista ou galeria, mas usa metade de seu salário para fazer uma tatuagem, que ele nunca vai vender, ou um colecionador muito rico que compra pinturas na galerias, nem as penduram na parede, e as vende novamente com lucro?”, continua.

Tim (2006-2008), de Wim Delvoye
Tim (2006-2008), de Wim Delvoye

Se a ideia é questionar o mercado de arte, vale lembrar, ainda, o trabalho da carioca Ana Hupe que tomou uma carta que trocou com o também artista Daniel Tucci e tatuou apenas os sinais – entram vírgulas, pontos hífens, saem as palavras.   

Ana Hupe
Ana Hupe

Em 2006, a então namorada de Steiner conheceu o artista que já era conhecido pelas controversas tatuagens nos porcos e agora procurava alguém disposto a oferecer as costas como tela. Dois anos depois, após 40 horas de tatuagem, Steiner carregava no corpo a imagem de uma Madonna, com raios amarelos emanando de sua auréola, coroada por uma caveira em estilo mexicano. Em tempo: a mídia cita Steiner como obra de arte, com a data de criação; e não com o ano de nascimento e morte, como costuma-se referir aos seres humanos. Portanto, não estranhe ao deparar-se com “Tim (2006-2008)”. Quando o homem-obra morrer, sua pele será emoldurada e entregue ao colecionador que já comprou o trabalho – até então, ele passa a vida sentado em galerias sem camisa. Exatamente como sugere o filme, mas com um detalhe importante: Jeffrey Godefroy, o artista da trama interpretado pelo também belga Koen De Bouw, tatua um passaporte com visto nas costas de Sam Ali, o imigrante dírio que sonha em ir para a Bélgica encontrar a namorada, vivido pelo francês Yahya Mahayni. 

O homem que vendeu a sua pele
O homem que vendeu a sua pele

Começa aí outra discussão séria e complexa do mundo da arte: a crise dos refugiados se intensificou nos últimos 10 anos fazendo com que muitos artistas se sensibilizarem com o tema. São inúmeras as obras que propõem um alerta para o número de mortes nas travessias e para o crescimento da xenofobia, especialmente na Europa, por conta do crescente número de pessoas desamparadas em seus países que fogem de guerras e fome.  A xenofobia, aliás, é um tema que perpassa The Square – outra produção cinematográfica que faz duras críticas ao mundo da arte. Entre os artista que abordam o tema, estão o israelense Roee Rosen, turco Erkan Özgen, o polonês Artur Żmijewski, , a brasileira Regina Parra, e o chinês Ai Weiwei – ele que fez inúmeras obras sobre o tema que incluem até uma instalação com os coletes salva-vidas perdidos no mar – que muito provavelmente não salvaram vidas! – e o filme Human Flow.

Mas até que ponto é válido explorar a desgraça humana para falar sobre um problema? O uso de imagens trágicas em nome da arte, ou até da política, sempre foi um assunto delicado – pense no fotógrafo Kevin Carter, que fez uma das mais poderosas fotografias que denunciava a fome na África, e acabou se matando por culpa. Agora imagina usar seres humanos ( os que sofrem com essas desgraças) como objeto de arte? É o que aconteceu no filme e chocou muitos…No entanto, mais uma vez, essa tática contraditória não é nova no mundo da arte: em 2017, Olafur Eliasson apresentou Green Light na Bienal de Veneza. O polêmico projeto que dependia do público (consciente ou não) para se completar: 40 indivíduos de Nigéria, Gâmbia, Síria, Iraque, Somália, Afeganistão e China ocuparam o centro do pavilhão principal do Giardini para montar luminárias verdes – a representação física da cor e da luz seria uma metáfora sobre a admissão de migrantes.

Green Light, de Olafur Eliasson
Green Light, de Olafur Eliasson

Apesar de possuir um programa de educação e consultoria psicológica para diferentes grupos em exílio, Olafur construiu ali uma situação que coloca o espectador numa posição desconfortável ( ou não) observando os refugiados como se olhassem animais num zoológico, tirando fotos! “Ele claramente fez de propósito. Queria incomodar mesmo. Muitos artistas falam de exploração, explorando. É uma forma de desmascarar o próprio sistema da arte e fazer mea culpa”, relatou o curador Agnaldo Farias sobre o trabalho. “Ir para Veneza deve significar estar mais perto da sociedade. Não se vai para a Bienal para escapar dos problemas do mundo, é o oposto: é o lugar onde você precisa ver coisas em melhor resolução”, defendeu-se o dinamarquês. Ético ou não, fato é que chamou a atenção para o problema.

Monica Bellucci faz o papel da marchand de Jeffrey Godefroy
Monica Bellucci faz o papel da assistente e marchand de Jeffrey Godefroy
O homem que vendeu a sua pele
O homem que vendeu a sua pele

Inúmeras outras camadas e discussões podem ser exploradas a partir do filme. Outro ponto importante é que a diretora tunisiana faz questão de colocar o artista no papel do homem-branco-salvador que “resolve” a vida do imigrante ilegal. Há, aqui, uma salvação da opressão, mas oprimindo! No final, Sam é iludido e Jeffrey fica com os lucros! Na vida real, Tim foi comprado em 2008 por Rik Reinking, um colecionador de Munique, ao preço de 150 mil euros (pouco mais que a banana de Cattelan!), dos quais um terço foi embolsado pela própria obra de arte.Os colecionadores que compram a pele de Sam no filme são uma caricatura à parte – não merece comentários. A cena do leilão, no entanto, é bastante sintomática: para começar, Sam é vendido por um valor muito abaixo de grandes obras de arte – ele custou 5 milhões de euros, enquanto a pintura “Salvator Mundi”, de Leonardo da Vinci, foi vendida por 405 milhões de dólares. Nesse momento fica claro também que o público se interessa pelo homem-obra e finge se sensibilizar com o tema, mas quando Sam sai de sua posição vulnerável e toma uma atitude ( não vou dar spoiler!) estereótipos são reforçados. Ou seja: vale defender os refugiados, mas na prática continua tudo igual. Esse é o mundo da arte.

O homem que vendeu a sua pele
O homem que vendeu a sua pele
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