MAM de São Paulo abre coletiva de arte indígena contemporânea

Exposição une xamãs, pajés e artistas que refletem sobre os efeitos políticos e territoriais das invasões pecuárias

Jaider Esbell
Jaider Esbell

“Essa história de fim do mundo é só para os humanos. O planeta vai ficar aí, as plantas e peixes vão se adaptar e a humanidade vai acabar. Nós aparecemos um dia desses. O reino vegetal e das águas são nossos professores, mas nós esquecemos isso quando nos achamos modernos demais, evoluído demais, e achamos que poderíamos cortar a conexão com a natureza. O foco se voltou para a vida urbana e a galera pirou no antropocentrismo! O ser humano não é a espécie mais importante ou evoluída, é a mais burra, prepotente e ignorante”, ressaltou Jaider Esbell, do povo Makuxi, curador da mostra Moquém_Surarî: arte indígena contemporânea, aberta semana passada no MAM SP, como uma das exposições realizadas em parceria com a 34ª Bienal de São Paulo Faz escuro mas eu canto.

Por uma significativa coincidência do destino, o calendário do museu sofreu algumas alterações por causa da pandemia do COVID-19 e a exposição abriu exatamente no mesmo dia que Moderno onde? Moderno quando?, coletiva que busca refletir sobre o modernismo no Brasil e exibe um notório retrato de Mário de Andrade por Tarsila do Amaral. Interessado pela cultura indígena brasileira, o modernista que escreveu Macunaíma a partir de um mix de referências de diferentes culturas originárias, está a alguns passos da mostra curada por Jaider, que apresenta obras de 34 artistas representando diversos povos – os Baniwa, Guarani Mbya, Huni Kuin, Krenak, Karipuna, Lakota, Makuxi, Marubo, Pataxó, Patamona, Taurepang, Tapirapé, Tikmũ’ũn_Maxakali, Tukano, Wapichana, Xakriabá, Xirixana e os Yanomami. 

“A ideia era ter a chance de mostrar tanto a realidade do indigena completamente urbano, como o Ailton Krenak, que vive realidades muito complexas de conflito entre o nosso próprio povo; o indigena que está em constante fluxo entre a aldeia e a cidade, numa transição de tecnologia e conexão com o meio ambiente; e, o indígena “selvagem, tribal, puro”  (com muitas aspas), que na exposição é representado, por exemplo, por Davi Kopenawa que é um xamã Yanomami”, afirma o curador. A coletiva deve mostrar ao público, portanto, que existem outras histórias da arte e que não faz sentido encaixar a arte indígena em uma narrativa canônica. “Queremos reproduzir um estilhaçamento da história da arte e mostrar como intelectuais indígenas foram rechaçados, seja na arte ou no pensamento no Brasil”, completa.

 Se a maioria dos brancos nunca se deram ao trabalho de aprender as diferentes linguagens originais do Brasil ( os textos da mostra, vale notar, estão em portugês e em guarani, língua indígena mais falada no país), esses artistas e líderes se esforçam para construir pensamentos e articular seus discursos em português…para tentar nos fazer entender a complexidade e expansão que caracteriza a cosmologia dos povos indígenas. Eles também desenham, fotografam, fazem vídeos, esculturas e arte digital. E uma das estratégias de Jaider para o assunto ficar ainda mais acessível ( para nós!) foi dividir a exposição em subtemas: Txaísmo; Xamanismo; Vacas nas terras de Makunaimî – de malditas à desejadas; Tradição gráfica e Desabrochar da Mata Atlântica. 

Jaider Esbell
Jaider Esbell

Um deles, e talvez o mais impressionante, está ligado justamente aos povos Makuxi e a Makunaimî –  energia misteriosa e transformadora que, aos olhos colonizadores de Mário de Andrade, se personifica Macunaíma, um índio guerreiro, belo e esbelto. Vacas nas terras de Makunaimî – de malditas à desejadas nasceu em 2013 como o primeiro trabalho de Jaider com curador – mesma época em que ele pediu demissão do emprego público para dedicar-se inteiramente à sua produção de arte. Mas se existe algo em comum entre as culturas originárias é o consentimento de que nenhum caminho deve ser trilhado sozinho. Com esta convicção, portanto, Jaider convidou Carmézia Emiliano, Bartô, Isaiais Miliano e Amazoner Arawak para pensar sobre o significado do gado na vida deles. “Sugeri uma reflexão sobre como o boi chegou na nossa terra e transformou nossa cabeça. Como esse animal virou nossa vida de cabeça para baixo e como nós o incorporamos na nossa cultura e economia; e como esse animal é perigoso para as questões ambientais. A vaquinha é maravilhosa, mas ela é altamente danosa para a camada de ozônio. Além disso, ela compacta o solo, o que inviabiliza a manifestação da natureza. E tem boi demais na terra!  Uso a arte para trazer a cabeça das pessoas para a questão ecológica”, explica.  

Sueli Maxakali
Sueli Maxakali

A terra de Makunaimî é composta por campos naturais, e por isso o colonizador achou que era perfeita para ser usada como pasto – o que facilitou a  introdução e criação do gado na chamada Amazônia Caribenha. Mas quando a vaca chegou na região pela primeira vez, estava carregada de doença, tristeza e fome. “Isso não existia no nosso meio. Então, quando os parentes viram a vaca, essas doenças dominaram na alma deles! Muitos morreram até que o Pajé falou para colocar pimenta nos olhos – esse foi o rito que ele descobriu para que sobrevivessemos à vaca. Nesse primeiro momento, portanto, ela era a maldita, horrorosa, indesejada”, lembra o artista e curador que tratou, ele mesmo, de retratar o animal doente e, ao mesmo tempo, encantador. Além de fazer uma série de telas simbolizando o primeiro encontro. Pouco depois, entretanto, começaram os embates entre vaqueiros e indígenas – foi quando começou “a grande confusão” e os brancos passaram a expulsar os indígenas das terras. 

Os outros artistas se encarregaram de explorar o momento em que o boi passou a ser desejado: “Os padres italianos chegaram para nos ajudar a resgatar a terra. Eles juntaram dinheiro e se disfarçaram de vaqueiros para comprar gado porque os fazendeiros não vendiam gado para índios. Houve essa artimanha para os índios terem gado e, consequentemente, o direito à terra. Nascia o projeto Uma Vaca para o Índio e, assim, o animal maldito tornou-se desejado”, argumenta. 

Outro núcleo interessante é o dedicado ao Xamanismo, reunindo trabalhos dos xamãs Paulino, Antonio, Armando, narradores que não tinham familiaridade com papéis, canetas e lápis, mas que dominaram rapidamente a técnica do desenho para reproduzir  visualmente a sabedoria oral de seus povos. “Estruturas narrativas, uso de signos gráficos, alteração dos limites da figura humana, cartografias cosmológicas”, são alguns dos elementos em comum. Neste grupo está, ainda, o coletivo MAHKU – os artistas Huni Kuin que pintam a partir de seus cantos xamânicos – e um dos maiores destaques da mostra: Elisclésio Makuxi, que usa papel preto e flecha-caneta colorida para uma guerrilha estética contra a opressão da monocultura e pecuária trazidas pela colonização no território ancestral de seu povo em Roraima – o mesmo de Jaider e de Makunaimî! 

Elisclésio Makuxi
Elisclésio Makuxi
Elisclésio Makuxi
Elisclésio Makuxi

Os trabalhos escolhidos para falar sobre o Txaísmo ( conceito formulado a partir da palavra txai, termo em Hãtxa Kuin, língua do povo Huni Kuin, que pode ser traduzido por “cunhado”) expressam um pensamento comum também em diversas culturas originárias: parentesco não é estabelecido por uma conexão biológica, e sim por relações de reciprocidade e comprometimento. “No contexto do encontro violento entre mundos inaugurado pela invasão colonial, o txaísmo é um convite urgente para criar novas formas de relações, dilatadas em outras dimensões de tempo e espaço”, aponta o texto curatorial. Trata-se, ainda, da expansão do que o próprio Krenak sugere quando diz, por exemplo, que um rio é seu avô! A ideia aqui é estabelecer alianças afetivas com todos os seres que compõem o cosmos para, enfim, aprender a respeitá-los.

Elisclésio Makuxi
Elisclésio Makuxi

Makunaimî (o avô dos Makuxi) e os modernistas 

Quando tinha 6 anos de idade, o avô biológico de Jaider começou a dividir com ele fragmentos da cosmologia de seu povo, enquanto o menino via a violência contra seu povo endurecer no auge da ditadura militar. De um lado, uma cosmologia mágica e poderosa, de outro a cruel realidade e a percepção de que teria que lutar (de alguma forma) pelo seu povo. Ele falou especialmente da árvore Waza’ka ie, que é a grande árvore que tem todas as coisas, frutos, saberes, remédios e venenos, tudo que existe no mundo visivel e invisivel. 

“Todas as culturas falam sobre essa árvore, mas na nossa cosmologia essa existência é ainda mais clara pois temos o monte Roraima no formato de um tronco de árvore cortado. Lá é a morada do Makunaimî, meu avô. Ele é uma energia misteriosa e maior da transformação, ele não tem um corpo, é uma energia densa que vai transformando o mundo. Mas nos dias de hoje ele aparece caracterizado como uma figura de um guerreiro índio, belo, esbelto – isso já não é nossa essência, é uma apropriação do patriarcado machista do colonizador. A energia de Makunaimî ainda está lá atrás, não chegou na separação de gênero. Um dos meus trabalhos é afrontar o machismo e patriarcado, inclusive dentro de nosso próprio povo”, explica Jaider. “Eu estou trabalhando nos rastros do meu avô que foi pego, lá no meio da serra, por um etnólogo alemão. Mas a história dele que foi contada a este etnólogo  por um de nossos parentes é apenas uma na variação da nossa cosmologia, que é muito viva. Um parente conta uma história, outro conta outra – elas não se contradizem ou conflituam, mas complementam e alimentam a complexidade da nossa cultura. Não tem simplificação nem tradução. E esta história construída de forma viva e contínua é uma forma de resistência.  Por que o Makunaimî perturba tanto as pessoas? Porque as pessoas estão acostumadas a viver com um fundamento, uma única versão da história”, conclui.  

Nesse momento Mário de Andrade cria Macunaíma – “um herói sem caráter”- a partir de  uma série de apropriações: além de uma narrativa de Makunaimî, ele usa características de várias outras culturas apoiado no conceito antropofágico. “Para começar, eles distorceram e descaracterizaram o teor ritualístico da antropofagia. Não se trata de uma ‘selvageria’ ou barbárie. Existe todo um rito que o branco nunca vai entender!, reflete Jaider. “No mundo do espetáculo,  Makunaimî, que é essa entidade maior, corporificou a “cultura indígena” no mundo recém instaurado – o Brasil “civilizado”. Ele virou o cânone do modernismo e não digo que está errado, mas eu questiono esse lugar apontando a existência de outras variações. Esse é um trabalho muito fino e estratégico para questionar a ideia de soberania. Quando um povo se coloca como soberano ele precisa matar, humilhar e diminuir outros povos. Sempre digo: cuidado com ideias e atitudes supremacistas. Especialmente na atual situação que a gente vive de urgência ecológica, ninguém pode dizer que é melhor que ninguém. Estamos destruindo nosso planeta e ainda preso nesse tipo de discussão: o índio sofre mais que o preto; o gay apanha mais que a mulher…ficamos brigando, se descabelando,  enquanto a canoa enche de água. Daqui a pouco a luz se apaga e o mundo se acaba. Parem de brigar e cuidem da árvore!  É preciso sair dessa leseira e acalmar o aquecimento global porque vai morrer todo mundo: índio, preto, rico, milionário, loiro, menina de olho azul!”, conclui. 

Muitos artistas e líderes indígenas estão anunciando há algum tempo que a sobrevivência da humanidade como conhecemos só será possível se passarmos por um processo de transformação grande. E é sobre isso, de certa forma, o título da exposição. Moquém_Surarî a evoca a mutação ou a destruição de algo pré-existente por algo novo.  É também sobre a troca de saberes que atravessam diferentes tempos e espaços– trânsitos que constituem os movimentos da arte indígena contemporânea.

Moquém é uma tecnologia milenar utilizada pelos povos indígenas para desidratar e defumar, com o objetivo de conservar os alimentos após a caça coletiva e facilitar seu transporte até as aldeias. Nas narrativas Makuxi, o Moquém se transforma em uma mulher, chamada Surarî,  que, nos tempos antigos, subiu aos céus à procura de seu dono que a havia abandonado. Uma vez no céu, Surarî se transforma na constelação responsável por trazer a chuva, marcando o fim do mundo e o começo de um novo. 

Como bem define Jaider Esbell, “Arte Indígena Contemporânea é uma armadilha para pegar bons curiosos. Não é um quadro, flecha ou cerâmica; é um feitiço para falar de um assunto sério que é a urgência ecológica”.

Page Reader Press Enter to Read Page Content Out Loud Press Enter to Pause or Restart Reading Page Content Out Loud Press Enter to Stop Reading Page Content Out Loud Screen Reader Support