Lilia Schwarcz conversa sobre a exposição que sobreviveu aos ataques terroristas em Brasília

Conheça os detalhes sobre o processo de criação da mostra “Brasil Futuro” que compôs o festival de posse do presidente Lula

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Vista da montagem da obra “Somos futuro”, 2022, Marlon Amaro. Divulgação.

A exposição cuja principal temática é a retomada da democracia, por muito pouco escapou dos atentados golpistas do último domingo e reabriu as portas ontem, dia 11 de janeiro, com maior controle de acesso. 

Brasil Futuro foi inaugurada no Museu Nacional da República como parte das atrações para marcar a mudança de governo. Em tempo recorde, a curadoria coletiva de Lilia Schwarcz, Rogério Carvalho, Paulo Vieira e Márcio Tavares, conseguiu reunir mais de 200 significativas obras que podem ser visitadas . 

Convidamos a historiadora e antropóloga que encabeçou a curadoria para falarmos sobre os processos de criação da mostra e seus significados.

Giovana Nacca – Há quanto tempo essa exposição está sendo planejada? Ela teria acontecido se o resultado das eleições tivesse sido diferente?

Lilia Schwarcz – Quando você fala em planejamento é bondade, porque nem sempre as histórias são todas tão organizadas como a gente gostaria de contar. Como eu sou historiadora, eu sou fiel às fontes, então eu vou dizer a verdade. Eu sou muito amiga do Márcio Tavares, que era secretário do PT, agora é secretário adjunto do Ministério da Cultura. Então, quando o Lula ganhou, o Márcio estava em São Paulo e a gente combinou de tomar um café. Aí, conversando com ele – aquelas conversas de café mesmo, nada a ver – falamos dos rituais de posse e então eu falei para ele “Márcio, eu acho que toda história de posse vira um fenômeno efêmero. Vocês deviam fazer coisas que ficam. Por que vocês não fazem uma exposição sobre democracia? Alguma coisa para congregar as pessoas em torno dessa ideia. E nada como os artistas, que são verdadeiros faroletes e são uma classe que foi muito prejudicada durante esses últimos quatro anos.” Falei como quem não quer nada, despretensiosamente mesmo. Ele foi para Brasília, e então, acho que foi no dia 9 de dezembro, uma coisa assim, ele me escreve e fala “saiu o nosso projeto”. Eu falei “nosso projeto?” (risos).

Imagina a situação, era uma exposição que tinha que abrir dia 1º de janeiro e nós estávamos no dia 10 de dezembro. Não tinha nada, não tinha projeto, não tinha texto. E aí ele me falou que seria no Museu Nacional da República. Olha a encrenca. Um museu sensacional, um emblema do que é Brasília e da República. Mas como toda obra de Niemeyer, é uma obra sem paredes. Além de tudo, a gente tinha que fazer também a expografia e a iluminação porque o museu não tinha iluminação. 

A primeira ideia era usar os acervos dos museus de Brasília. Mas como é que você abre uma exposição sobre democracia apenas com artistas de uma geração, em geral brancos e homens? Ou seja, não dava. E aí que eu comecei a acionar os meus amigos artistas e galerias. E eu preciso dizer que eu fui muito apoiada, todo mundo abraçou a ideia, foi sensacional. Porque também tinha que pensar no transporte, no seguro, na produção… Mas todo mundo, a equipe toda se entregou mesmo. E aí foi dando certo. Mas enfim, o planejamento é esse que eu estou te contando, por isso eu dou risada. Foi uma exposição totalmente distinta das que eu já fiz.

GN – Você falou sobre a escolha do perfil de artistas para compor a mostra. Tem uma parcela de nomes que a gente viu ascender nas últimas principais mostras de São Paulo e Rio de Janeiro, mas acredito que muitos deles podem estar estreando em Brasília, não é? Como tem sido para a cidade receber esses artistas?

LS – Bom, não dava muito tempo de fazer pesquisa, mas o Rogério Carvalho e o Márcio trouxeram muitos artistas de Brasília. Isso foi muito bacana pra mim, descobri muita gente que eu não conhecia. A gente também encontrou muitos artistas pelo Instagram, isso também foi muito legal. Então tem muito artista novo e jovem também.

Mas para você ter uma ideia, Brasília nunca tinha recebido Adriana Varejão. E ela não estreou com uma peça qualquer, ela levou uma peça imensa. E as pessoas têm me dito isso mesmo, que estão muito emocionadas por conta da qualidade dos artistas. A gente tem dois Cildo Meireles, a Daiara [Tukano] que é de Brasília, o [Gustavo] Caboco que está lá pela primeira vez, a gente tem o Baniwa que está com o lambe-lambe junto com a Tarsila… Então acho que foi um encontro muito bonito. O pessoal tem me relatado que as pessoas estão recebendo com muita emoção, muitas choram. Então acho que está sendo uma experiência importante para Brasília, sabe?

GN – Inclusive a Daiara fez um projeto especialmente para a mostra, né? Como foi essa ideia, partiu de vocês?

LS – Ela foi incrível. Nos cinco dias que a gente ficou montando, ela ficou junto, não só pintando, mas opinando também. Eu já trabalhei com a Daiara quando eu fiz, junto com o Jaime Lauriano e o Pedro Meira Monteiro, a exposição Contramemória no Municipal. E na época ela queria fazer uma obra, mas por conta das especificidades do Municipal, eles não aceitavam. Aí, agora a gente falou “essa é a sua vez”. E ela produziu aquela obra, acho que em três dias inteiros.

E aí as pessoas estavam dizendo que era uma Pietá e ela ficou danada da vida, porque ela dizia “é uma imagem universal, uma obra perspectivista e as pessoas estão de novo fazendo uma leitura colonial e eu estou no núcleo de colonizar”. E, na última hora, ela veio com o coletivo dela, do qual fazia parte o Jaider, e faz parte o Baniwa. E ela projetou as imagens daqueles bichos e humanos animalizados no teto. Então a Daiara teve uma participação muito especial e eu estou muito feliz que o nome dela e a obra dela tenham aparecido muito, porque ela foi uma das que comprou a ideia de fato. Assim como a Laís Myrrha e O Bastardo que também fizeram cada um uma obra para exposição. 

Vista da exposição Brasil Futuro. Divulgação.

GN – Uma outra obra que chamou atenção para além da mostra, foi a Orixás, da Djanira, por ter sido sempre exibida no Salão Nobre do Planalto e removida durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. Neste ano, ela volta à cena por meio da exposição. Queria que você falasse um pouco sobre o significado desse movimento de retorno e sobre o estado físico da obra.

LS – Isso é muito legal de você me perguntar porque desde a primeira conversa com o Márcio – quando eu nem sabia que ia ter a exposição e achava que estava dando ideia para ele e não para mim (risos) – eu sugeri de pegar algumas obras emblemáticas que foram retiradas pela então Primeira-dama Michelle Bolsonaro. E eu citei a Orixás. Então essa foi uma obra que nós quisemos o tempo todo e foi um esforço enorme do Rogério Carvalho e da Sara Seilert para poderem trazer. 

Só quando a obra chegou que nós vimos o furo, um furo intencional bem no saiote de Oxum. Ela vai ter que passar por um restauro, um restauro cuidadoso, mas ela está protegida na exposição.

Eu acho até que é um ato político, não é um furo. Eu acho que ela tomou uma dimensão política muito grande, inclusive com os últimos episódios do domingo passado. Depois que nós vimos o que aconteceu com Di Cavalcanti, que foi de fato apedrejado – inacreditável –, ficou mais evidente essa operação selvagem para com obras como essas. 

“Orixás”, 1960, Djanira da Motta e Silva. Fotos do Palácio do Planalto. Foto: Roberto Stuckert Filho.

GN – Como você disse, tiveram outras obras que foram retiradas do Palácio no governo passado, teve mais alguma que vocês conseguiram trazer para a exposição?

LS – 
Não, não deu tempo. Essa foi a única. Mas a exposição foi muito boa, porque o Rogério Carvalho já tinha sido o curador do Palácio e agora voltou a ser. Então, o mote da exposição foi muito importante para ele agora avaliar todas as obras que foram retiradas e trazê-las de volta ao convívio do palácio.

E foi muito bonito, porque na posse da ministra Margareth Menezes, eu fui convidada a falar em nome da exposição e tudo mais, e mencionei o caso da Djanira. E quando a Janja foi falar ela disse “Olha, Lilia, eu posso garantir que a Djanira vai voltar ao Palácio e que nós vamos fazer uma política de acervo”. Porque nós falamos muito que eles podiam não só trazer as obras de volta, como também poderiam ampliar as obras do acervo, no sentido de torná-lo mais plural, mais inclusivo e trazer artistas contemporâneos que até então não existem lá. Trazer mais artistas mulheres, indígenas, negros, LGBTQIA+. E ela respondeu de púlpito que fará isso. Então eu acho que se a exposição der esse impulso, ela já terá feito bastante.

GN – Isso seria ótimo. E já que você citou a barbárie do último domingo, eu queria falar sobre um vídeo que circulou bastante de uma mulher, membro desses grupos golpistas, no Museu Nacional criticando o fato dela não poder tocar nas obras, reclamando bastante da própria exposição e dos artistas em geral. Um representante do Museu disse em uma entrevista que é comum que pessoas às vezes tenham curiosidade de tocar nas obras, mas desde que a exposição Brasil Futuro entrou em cartaz, esse tipo de situação se acentuou. A gente sabe que a arte enfurece qualquer ser embrutecido pelo pensamento fascista, mas você acredita que essa exposição em específico pode ter dado um recado mais incômodo? Como tem sido a repercussão da mostra nesse sentido? 

LS – Eu acho que uma exposição de arte nunca passa um único recado. A beleza de uma exposição de arte é que ela faz sentido de muitas maneiras. Então, enquanto eu estava lá, não percebi nenhuma demonstração de raiva, pelo contrário.

E no dia em que esse vídeo foi filmado, o pessoal do museu e da produção viram o que eu talvez não teria visto, porque eles perceberam que algo estava acontecendo. Entraram quatro grupos bolsonaristas – porque estavam vestidos como tal –, e cada grupo com umas quatro ou cinco pessoas. E foram esses grupos que começaram a provocar e dizer que queriam mexer, desafiar os monitores e os seguranças. Então a Sara me mandou uma mensagem dizendo que eles estavam decidindo fechar o museu. Eu talvez teria decidido errado, mas eles decidiram acertadamente, porque imagina o estrago que poderia ser feito. E aí eles foram convidados a se retirar e eu preciso dizer que eles se retiraram pacificamente.

Então eu acredito que as invasões foram feitas por um setor de extrema direita radical e que não fala nem sequer por toda a direita. Eu acho que essas pessoas são uma minoria no Brasil, porque a experiência que nós tivemos até então foi uma experiência de grande alegria. Inclusive o museu estava lotado na abertura. Eu fiquei até com medo e nada aconteceu, sabe? Nós sabemos quem são aquelas pessoas, são pessoas que não tem nenhum respeito à democracia, que querem fazer valer a sua vontade por meio do vandalismo.

GN – Para elas qualquer exposição é uma afronta, né? E como é fazer uma exposição que compõe a programação festiva da posse do novo presidente sem torná-la partidária?

LS – Acho que a cena simbólica do presidente Lula subindo a rampa e declarando a diversidade é muito expressa nessa exposição, porque a grande questão dela é a diversidade. A exposição não tem um partido. Tem a obra do Lannes, mas é uma obra antiga, não foi feita agora. Tem a do Bastardo, que nem é tão evidente, e as fotografias do Mauro Restiffe. São as únicas mais diretamente ligadas à imagem do Lula. Mas a exposição foi feita sem qualquer interferência, isso é muito importante. Se tivesse acontecido interferência, talvez eu não tivesse falado no texto [curatorial] de democracia como projeto incompleto. Talvez eu dissesse coisas como “agora chegou a democracia”. Ele não fala nada disso. Na verdade, ele cobra do governo, cobra mais inclusão. Então, isso era importante para nós, porque eu acho que essa obra feita a serviço de um governo nunca pode ser uma boa obra.

GN – Sobre o nome da exposição… A palavra “Futuro” no título traz uma conotação de algo um pouco mais distante de nós, como se esse Brasil apresentado da exposição fosse profetizado, mas não vivido de imediato. 

LS – Eu achei muito bonita a sua pergunta, porque eu aleguei a mesma coisa. “Brasil do Futuro” é o nome do festival. Eu falei “gente, quando falamos ‘Brasil do futuro’, a gente está dizendo que ele não existe agora e essa exposição está sendo realizada agora e com obras de agora”. Então você tem toda razão na sua questão e a gente mudou um pouquinho e tiramos o “do”, ficou “Brasil Futuro”. E eu acho muito bonito, fica mais arejado. Fica nesse tempo sem tempo, um futuro presente, porque a gente sabe que o futuro está rasgado de presente. Então eu acho que nós duas concordamos que os artistas têm muito de visionários, eles estão de fato projetando esse futuro.

“O Mais Importante É Inventar o Brasil que Nós Queremos”, 2021, Elian Almeida

Serviço 

Brasil Futuro: Formas da Democracia

Local: Museu Nacional da República

Endereço: Setor Cultural Sul, Lote 2 – Brasília – DF

Data: Até 26 de fevereiro de 2023

Funcionamento: De terça-feira a domingo, das 9h às 18h30.

Ingresso: Grátis

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