Afinal, NFT é arte ou absurdo bilionário?

Considerar obra de arte qualquer feito em determinado suporte, seja qualquer pintura ou qualquer NFT, seria um retrocesso das ideias já superadas na arte contemporânea ou pós-moderna, onde já excedemos a idealização de determinados suportes? 

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Obras do artista digital FEWOCiOUS em exibição na Christie’s em Nova York.

O debate para definir o que é Arte – com A maiúsculo – não é recente, mas nunca se esgota. Entretanto, recentemente a discussão cresceu na internet depois dos editores da Wikipedia votarem para não classificar NFTs como arte, provocando indignação na comunidade criptográfica. Considerando que em 2021, colecionadores e comerciantes gastaram US$ 22 bilhões em NFTs, acima dos US$ 100 milhões em 2020 – dados fornecidos do DappRadar, que oferece regularmente relatórios comerciais e mantém uma tabela de classificação das principais vendas de NFT – é de se prestar atenção no movimento e rumo que essa tecnologia irá tomar.  

A briga começou no mês passado, de acordo com o Cointelegraph , quando os editores de uma página dedicada às vendas de arte mais caras de artistas vivos questionaram exemplos como a venda de US$ 69 milhões da Christie por Beeple’s Everydays ou The Merge de US$ 91,8 milhões da Pak. A conversa rapidamente mudou para a semântica, com os debatedores se perguntando se os NFTs constituíam tokens ou se representavam obras de arte. 

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Beeple’s Everydays 

Como é comum em disputas de classificação na enciclopédia online gratuita, a questão foi colocada em votação. Cinco em cada seis editores votaram para não incluir NFTs na lista. 

“A Wikipédia realmente não pode decidir o que conta como arte ou não”, escreveu um editor na página de discussão, ecoando o sentimento predominante dos eleitores que votaram por não incluir os tokens na lista. O único apoiador, enquanto isso, apontou para reportagens em fontes confiáveis da mídia como o New York Times, que se referiu a Beeple como o “terceiro artista vivo mais vendido” após sua venda na Christie’s. 

Embora a votação tenha ocorrido entre apenas meia dúzia de pessoas, todas voluntárias, em uma página secundária, a conversa resumiu um debate cultural mais amplo em torno de novas formas de arte digital e sua relação com os modos tradicionais de produção artística – e, por esse motivo, as pessoas se atentam. 

A conclusão irritou alguns na comunidade de criptomoedas, em particular. “A Wikipédia funciona a partir de precedentes. Se os NFTs forem classificados como ‘não arte’ nesta página, eles serão classificados como ‘não arte’ no restante da Wikipedia”, escreveu Duncan Cock Foster, cofundador da popular plataforma NFT Nifty Gateway, em meio a uma longa série de posts no Twitter. “A Wikipédia é a fonte global da verdade para muitos ao redor do mundo. As apostas não poderiam ser maiores!”. Foster ainda disse: “Os artistas digitais lutam por legitimidade a vida toda. Não podemos deixar que os editores da Wikipedia os afastem!”.  

Mas a gente sabe que o mercado das NFTs teve uma ascendência nos últimos tempos que transcende os artistas digitais tradicionais. Podemos citar como exemplo, a comercialização de memes: uma jovem de 21 anos faturou cerca de US$ 500 mil (R$ 2,8 milhões) com a venda do NFT de seu meme “Disaster Girl” ano passado, e o “Meme Dog” foi vendido via NFT por US$ 4 milhões, batendo recordes de valor pago na época.  

Meme doge
Foto de Kabosu, a shiba inu que originou o meme “Doge” (Imagem: Reprodução/ Atsuko Sato)

Outros exemplos para considerarmos são: o primeiro ‘tuíte’ da história, publicado em 21 de março de 2006 pelo Jack Dorsey – CEO do Twitter, que foi arrematado em sua versão NFT em um leilão no início de 2021 por US$ 2,9 milhões (R$ 16,5 milhões); e Melania Trump que anunciou, no final do ano passado, estar lançando sua própria plataforma NFT depois de estrear sua primeira oferta: uma pintura de si mesma intitulada Melania’s Vision (2021) – uma aquarela feita pelo artista francês Marc-Antoine Coulon. A ex-primeira-dama dos Estados Unidos disse que a iniciativa incorpora sua paixão pelas artes.  

Melania’s Vision (2021) -Marc-Antoine Coulon.

Com tudo isso, talvez possamos entrar num consenso de que nem todo e qualquer NFT seja arte, essa tecnologia pode ser apenas um meio para tal, assim como qualquer outro suporte ou material. Também convidamos o idealizador da Leme NFT, Franco Leme, para nos esclarecer sobre o assunto, ele disse: “Quando falamos de NFTs (Tokens não fungíveis) estamos falando de um Token vinculado a algo único (e não mutuamente intercambiável, ou seja, não fungível), este podendo ser uma obra de arte ou não. Logo, o que define se NFT é arte é o arquivo vinculado em si, se uma obra de arte se utiliza de uma tecnologia que permite o uso de NFTs como intermédio digital por exemplo, ela é uma obra de arte comercializada como um Token não fungível/NFT.”.

NFT Leme
Jose Carlos Martinat_ Distractor 3.0, 2021, vídeo.

Vale ressaltar aqui a indicação de abertura da “Apresentação do acervo” no dia 29 de janeiro, onde a Galeria Leme apresenta pela primeira vez obras do acervo de arte digital em NFT no espaço físico. A mostra conta com trabalhos de artistas contemporâneos, como Eduardo Kac, Gustavo Von Ha, João Angelini, Luiz Braga, José Carlos Martinat e Zilvinas Kempinas.

Um token não fungível pode movimentar milhões e tem inserido novas figuras – sobretudo jovens – no mercado, mas será que isso é suficiente? Esse é o papel da arte? NFTs podem ser uma forma contemporânea de Robin Hood-ismo? É possível que os artistas usem essas ferramentas para desviar alguns dos trilhões globais para direções mais produtivas e humanas? Poderiam os NFTs serem uma versão invertida de Readymade de Duchamp – cujos objetivo era demonstrar a fungibilidade das obras quando deslocadas de uma categoria discursiva para outra? 

Para essas tantas perguntas, o debate ainda está aberto. Mas Brian Eno – músico e artista visual britânico mais conhecido por seu trabalho pioneiro em música ambiente e que, inclusive uma vez urinou no famoso mictório por estar descontente com a forma como o mundo das galerias estava interpretando mal a filosofia da arte de Duchamp – diz que ainda que essa tecnologia seja arte e que ele possa lucrar milhões através dela, para ele não faz sentido adentrar esse universo.  

“Fui abordado várias vezes para ‘fazer um NFT’. Até agora nada me convenceu de que há algo que valha a pena fazer nesse campo. ‘Valer a pena’ para mim significa trazer à existência algo que agregue valor ao mundo, não apenas a uma conta bancária. Se eu quisesse principalmente ganhar dinheiro, teria tido uma carreira diferente como um tipo diferente de pessoa. Eu provavelmente não teria escolhido ser um artista. NFTs me parecem apenas uma maneira de os artistas obterem um pedacinho da ação do capitalismo global, nossa própria versão bonitinha de financeirização. Que doce – agora os artistas podem se tornar pequenos idiotas capitalistas também.” diz o artista que também levanta a questão ambiental para a pauta: “Em um mundo em aquecimento, uma nova tecnologia que usa grandes quantidades de energia como ‘prova de trabalho’ – ou seja, simplesmente para estabelecer um certo distintivo de exclusividade – realmente é bastante insana. Toda essa energia não está produzindo nada de que precisamos.”. 

O que será que 2022 vai trazer de desdobramentos para esse assunto? 

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Foto de JUSTIN TALLIS/AFP via Getty Images
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