Podcast “Death of an Artist” fim fatal de Ana Mendieta e Carl Andre

Produzido e apresentado pela curadora Helen Molesworth, o podcast revela com o Mendieta foi subjugada e o mercado de arte ficou em silêncio 

Tempo de leitura estimado: 9 minutos
Ana Mendieta
Ana Mendieta

“Essa poderia ser uma história sobre duas pessoas fascinantes mas ela terminou em uma ligação para o 911”, anuncia a curadora Helen Molesworth no podcast Death of an Artist. A produção, apresentada por Molesworth, retoma o julgamento do artista Carl André, acusado de matar sua companheira, a também artista Ana Mendieta.


Era 8 de setembro de 1985 quando Mendieta, uma artista cubana que tinha medo de altura, caiu do 34º andar do seu apartamento na 300 Mercer Street, em Greenwich Village.  Alguns pensam que foi suicídio, outros defendem que foi um acidente…muitos afirmam que ela foi assassinada pelo marido.  


Pai do minimalismo americano, Carl foi julgado e absolvido pela justiça norte-americana. Mas Molesworth “desenterra”, no podcast,  fatos, depoimentos e evidências colhidos por ela e pelo jornalista Robert Katz que acompanhou o julgamento na época e conversou com muitos e poderosos players do mercado para escrever o livro “Naked by the Window: The Fatal Marriage of Carl Andre and Ana Mendieta”. 


Apesar da apuração minuciosa, entretanto, o livro não foi bem recebido. E o podcast caminha para o mesmo destino. E aparentemente foi isso que motivou a curadora a jogar luz para esta história: “A maioria das pessoas não sabe que esse caso dividiu o mundo da arte em 1985. E ainda divide”, declara. “Logo descobri que esta é uma história que muitos dos meus colegas preferiam que eu não contasse”.  E ela estava certa: quando o podcast foi lançado foram muitas as críticas. 

Ana Mendieta
Ana Mendieta


O motivo? Parece que a arte está acima de tudo e todos e o silêncio absoluto, quando o assunto é a vida pessoal de Mendieta e Andre, tem sido o escudo protetor do legado artístico do casal. Os que defendem a genialidade dele, preferiram seguir visitando e elogiando suas exposições, como se tivessem assinado uma espécie de pacto de (literalmente) sangue pela sua arte. A maioria dos que acreditam que ela foi vítima de feminicídio cansou de protestar e preferiu celebrar a obra de Mendieta sem gastar uma linha com essa parte trágica de sua história. Ela merece, afinal, muito mais do que um true crime podcast – gênero de não-ficção que tem feito grande sucesso nos últimos anos – defenderam. 


Quem era ela?


O primeiro episódio começa descrevendo uma aparente cena de crime: uma poça de sangue escorre por debaixo de uma porta; muitas pessoas passam e observam o cenário procurando alguma explicação ao redor; eventualmente desistem e seguem para suas vidas até que uma delas limpa o sangue e elimina qualquer evidência de uma possível violência física. Quem conhece a história de Ana Mendieta pensa que trata-se da descrição de sua própria morte, mas Molesworth está descrevendo, na verdade, um dos primeiros trabalhos da artista, feito enquanto ela ainda estudava na University of Iowa, chamado Moffitt Building Piece. “Como muitos trabalhos que Ana fez, este foi tragicamente profético”, pontua a narradora. 

Ana Mendieta
Ana Mendieta


Ciente da normatização da violência e injustiça na sociedade em que vivia, Mendieta investigava a reação de sua própria comunidade diante de um crime brutal: uma mulher havia sido estuprada e morta no campus da universidade. “Como as pessoas reagem diante da evidência de uma violência?” – a pergunta que ela fazia nessa sua primeira grande obra iria assombrar o mercado de arte para sempre depois de sua morte. 


Ao longo dos episódios, a curadora explica como a obra deMendieta era potente, radical e irreverente. Nos anos 1970,  mundo da arte era, como define Molesworth, “uma arena filosófica” e Ana estava na liderança de todas as vanguardas da época – pense na arte feminista; na body art; na arte povera; e na land art

 Ana Mendieta
Ana Mendieta


Filha de um intelectual que foi preso em Cuba por suas ideias políticas nos primeiros anos do governo de Fidel Castro, Ana foi uma das crianças enviadas para os EUA pela Operación Peter Pan(  uma ação coordenada entre o Governo dos Estados Unidos, a Igreja Católica e os cubanos em exílio, por meio da qual mais de 14.000 crianças foram levadas de Cuba aos Estados Unidos) quando tinha apenas 12 anos. Viveu anos com a irmã num orfanato católico e, depois, passou por diferentes casas. Não à toa, a busca por pertencimento e a ideia de lar está muito presente em seus trabalhos.

Eventualmente ela conseguiu voltar para seu país e investigar a própria cultura que, mais tarde, também apareceria em suas propostas artísticas. 

Ana Mendieta
Ana Mendieta


Mendieta logo desistiu da pintura – arte que, para ela, estava muito distante do mundo real – e começou a investigar a performance ao lado do professor e, por alguns anos amante, Hans Breder. Aos poucos o sangue e o corpo com matéria prima primordial começam a encontrar a terra e Ana assume um flerte também com a Earth Art. 
Fundada em 1972, a AIR Gallery foi primeira galeria cooperativa de artistas mulheres nos Estados Unidos. Foi lá que Ana apresentou sua primeira individual em NY: apresentou a série Silhuetas e conheceu Carl. 


Quem era ele?


“Todos os minimalistas eram escrotos. Menos o Sol Lewitt, que era um anjo. Uma pessoa incrível” , declara sem pudor o crítico de arte Peter Schjeldahl no podcast. Ele explica que o mundo da arte em NY naquela época era divido em duas “gangues”:  a turma de Warhol contra os defensores do Minimalismo. Ele preferia beber com os Warhols, mas conseguia separar o gosto pessoal do profissional e admirava Carl Andre, o artista, sem ressalvas. Mas Carl, o ser humano, não era fácil de engolir. 

Carl Andre
Carl Andre


“Ele mudou a nossa percepção do que é arte. A forma estava muito condensada. Aqueles objetos espalhados pelo chão diziam outra coisa. Era sobre minha presença andando em torno desses elementos”, declara, ainda hoje, impressionado. “Mas quando o conheci, não gostei. Parecia uma primadonna e um bolinador”. 


As peças, os materiais industriais e os restos de construções são apenas posicionadas e organizadas de forma metódica em suas instalações. Ou seja: Tudo pode ser retirado e colocando em outro lugar. Nada é colado. Nada é permanente. E isso foi revolucionário.  O ato de andar pelo trabalho ou o ato de montá-lo ou observá-lo – tudo é a mesma coisa. Tudo nos faz refletir sobre o espaço em que estamos  e como esse espaço existe antes e depois da nossa chegada e partida.

Carl Andre
Carl Andre


Carl ficou famoso por recusar monumentos ou algo permanente, conectado à forma de arte anterior. Era célebre também por sua postura anti-guerra e (pasmem) feminista. Ele chegou, inclusive, afirma Molesworth,  a enviar cheques para o movimento das mulheres que lutavam pela igualdade de gênero.  


Carl também era o artista que escreveu um manifesto contra galerias e críticos de arte, defendendo uma relação direta entre criativo e interessados por arte. Defendia a classe trabalhadora do mercado e andava de macacão como se fosse um operário – apesar de jantar nos restaurantes mais caros e morar num prédio luxuoso em Manhattan. 


O mesmo Carl, entretanto, falou na ligação, na primeira ligação para o 911, que Ana tinha pulado da janela depois deles terem brigado “porque ele era mais famoso que ela”. Quando os policiais voltam com ele no apartamento, Carl mostrou o seu catálogo e voltou a falar que é mais famoso que ela.


Carl e Ana estavam explorando a qualidade horizontal do chão e a terra como espaço escultural. Ambos negavam a verticalidade, o pensamento hierárquico e a ideia de progresso. Os dois mudaram, cada um à sua maneira, a nossa percepção de mundo e do que era arte. A atração do casal era, obviamente, intelectual.

 
Entre amigos e inimigos


Anotem esses nomes! Ao logo dos episódios muitos nomes conhecidos são citados. Entre os maiores nomes do minimalismo americano, está Frank Stella – o responsável por conseguir 250 mil dólares para tirar Carl Andre da cadeia, mais especificamente a lendária e violenta Rikers Island. Lawrence Weiner providenciou o advogado que acabou por denegrir a imagem de Ana e conquistar a absorção de Carl. 


A crítica de arte Lucy Lippard, teoricamente uma amiga de Ana, não conseguiu acusá-lo no tribunal. E a galerista Paula Cooper parece ter reunido todos artistas que representava para propor o tal pacto de silêncio. 


Na defesa de Ana, apareceu Nancy Spiral, Howardena Pindell e B. Ruby Rich, além da amiga advogada Natália Delgado e da irmã Raquelin Mendieta. As também cubanas Tânia Buguera e Coco Fusco explicam o contexto do seu país e alguns detalhes do julgamento. 


O julgamento

Ana Mendieta e Carl Andre
Ana Mendieta e Carl Andre


Ao longo do julgamento,  Mendieta foi estereotipada e reduzida, pelos advogados de Carl, a uma “mulher latina de sangue quente, tempestuosa, tempestuosa e incontrolável”. Chegaram a compará-la a uma bruxa. O motivo? Seu interesse pela Santería, religião de origem iorubá presente em Cuba, país onde nasceu.  
A ignorância e falta de respeito foram chocantes: Ana tem um trabalho chamado “Yemaya” que foi mencionado no  julgamento, quando os advogados insinuaram que a orixá “voa” no 7 de setembro e que Ana teria pulado no dia 8 de setembro como uma espécie de homenagem ou ritual. Note: Iemanjá não voa! E o dia 7 de setembro é apenas um data para celebrá-la em Cuba. 

 
A estratégia foi levantar dúvida sobre a vítima: induzir que Mendieta estava bêbada (fizeram um teste de álcool só no corpo dela, e não dele) e, por isso, a queda teria sido um acidente. Sua morte também poderia ter sido, insinuou o advogado, uma performance já que Mendieta “usava sangue e terra em seu trabalho como uma espécie de desejo inconsciente de morte” e pesquisava “o  impacto do corpo dela na Terra”.  
“Foi uma defesa totalmente racista. Pintaram ela como uma louca, envolvida com vudu por causa de seu interesse pela Santeria. Para começar, uma coisa não tem nada a ver com a outra – eles relacionaram essas duas coisas com base em  esteriótipos dos musicais de Hollywood. Além disso, o interesse dela pela religião era puramente acadêmico.”, explica Coco Fusco. “Enquanto estavam denegrindo Ana, dizendo que ela era descontrolada e perturbada, Carl ficava em silêncio, lendo. Aquilo foi um insulto”, completa.   Vale lembrar que Carl não precisou, em nenhum momento, depor. E escolheu ser julgado sem o júri popular.

 
Defendendo Ana


Não há dúvidas que foi uma defesa totalmente preconceituosa numa época em que o sul global ainda não tinha a força, voz visibilidade de hoje e quando feminicídio ainda não era um tema público. Graças à luta de muitas mulheres, o assunto é, atualmente, amplamente discutido dentro e fora do mercado de arte. 


Mas os números mostram que ainda temos que caminhar muito: no Brasil, em 2022, 1,4 mil mulheres foram mortas apenas pelo fato de serem mulheres – uma a cada 6 horas, em média. Não à toa, entre as defensoras recentes de Ana, estão as Guerrilla Girls. Elas afirmam que Carl é o  O.J. Simpson das artes e chegaram a fazer um trabalho com o rosto dos dois e os dizeres “”a cada 15 segundos uma mulher é agredida pelo marido ou namorado. E algumas dessas agressões terminam em assassinato”. 

Guerrilla Girls
Guerrilla Girls


Quando Carl ganhou uma retrospectiva no Dia Art Foundation, em 2014, outras artistas mulheres protestaram na frente da instituição: jogaram sangue de galinha na porta e colocaram um cartaz escrito  “We Wish Ana Mendieta Was Still Alive”.  No segundo momento, entraram na exposição e começaram a chorar em conjunto. Era uma espécie de movimento de cumplicidade e cuidado em nome de Ana já que elas perceberam que as instituições de arte não estavam dispostas a ouvir essa história. 


E agora?


Como lidar com todas essas informações? Apesar de absolutamente todo mundo do mercado de arte conhecer essa história, em diferentes níveis, as exposições de Carl continuam acontecendo e recebendo boas críticas. E isso não significa que as pessoas acham que ele é inocente, mas que isso não importa. Revela que a maioria consegue fazer como Peter Schjeldahl: separar vida e arte. Preferem seguir admirando a genialidade de alguns independentemente de suas biografias. 


O trabalho de Carl, afinal, já marcou a história e isso não vai mudar. Ao mesmo tempo, falar da morte de Ana, e não de seu trabalho, não seria mais uma forma de reduzir, invisibilizar, silenciar e apagar essa artista cuja obra é, ainda hoje, tão pulsante e revolucionária?


Mas o mundo está mudando e algumas atitudes já não podem mais ser omitidas das paredes de museus e catálogos. A história, claro, não pode e nem deve ser apagada, mas parece ser mais justo com o grande público colocar todos os pingos nos is e deixar que cada um assimile ou não as ressalvas. 

Ana Mendieta
Ana Mendieta
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