Rebeca Carapiá expõe trabalhos experimentais em sua nova individual

Em “Entre hoje e ontem para dizer sobre amanhã”, a artista cria uma linguagem que comunica a partir da incompreensão e reflete sobre resiliência

Retrato de Rebeca Carapiá. Crédito: Nti Uirá.

Além de atualmente integrar cinco importantes exposições coletivas entre São Paulo, Minas Gerais e Salvador, como “Dos Brasis: arte e pensamento negro” no Sesc Belenzinho e “Mãos: 35 anos da Mão Afro-Brasileira” no MAM-SP e no Museu Afro Brasil Emanoel Araújo, a artista abriu sua individual “Entre hoje e ontem para dizer sobre amanhã” na Galeria Leme. 

Como o título indica, a exposição se dá no cruzamento de temporalidades, no espaço entre caminhos. Ela lança olhar sobre diferentes pesquisas de Carapiá, que, tendo contato com seus cadernos de 2019, atualiza séries e conceitos anteriores, como também aponta para direções a serem exploradas. 

Sendo ela natural da Península de Itapagipe, uma região da chamada Cidade Baixa de Salvador bastante suscetível a enchentes, Carapiá cresceu convivendo com frequentes alagamentos em sua casa. Durante esses períodos, ela e seu irmão construíam barcos de metal que, inevitavelmente, sempre afundavam. A partir dessa vivência, a artista traça uma analogia refletindo sobre o contexto desafiador que a sociedade lhe impôs: “talvez eu seja o barco feito para afundar”. Mas longe de se limitar à experiência do trauma, Carapiá guardou as palavras da mãe e suas lições sobre resiliência: “amanhã vai alagar também e você tenta de novo”.

Vista da exposição “Entre hoje e ontem para dizer sobre amanhã” na Galeria Leme. Crédito: Filipe Berndt

Seu trabalho parte do exercício contínuo da escrita para narrar e refletir sobre a experiência de uma “mulher sapatão tentando ser artista na periferia”. Mas entendendo que sua própria existência não deve ser justificada, Rebeca passa a elaborar uma nova linguagem para que, baseada na não-literalidade, possa “dizer sem explicar”. Com isso, ela redescobre e assume a essência da escrita que precede a expressão gráfica: o desenho. 

A obra “Grafias, geografias e algum cansaço 1” destaca-se como exemplo que evidencia essa intenção de se aproximar visualmente da escrita por ser exposta na altura dos olhos do visitante e se apresentar em uma composição que prioriza uma leitura horizontal, como é comum na leitura ocidental. 

Apesar de sua intraduzibilidade, a linguagem criada por Carapiá é eficaz em sua capacidade de comunicar, ainda que a partir da incompreensão. Aliás, é justamente esta escolha que nos conduz à reflexão sobre como nos relacionamos com aquilo que não podemos entender, sendo este o cerne de sua pesquisa. 

Ultrapassando os limites bidimensionais do papel ou das paredes, a artista expande e coreografa robustas linhas no espaço, conferindo-lhes corpo e imponência. Assim, ela subverte a ideia das “palavras ao vento”, tradicionalmente entendidas como promessas vazias que se dispersam no ar sem deixar rastros. Em sua abordagem, essas palavras são solidificadas, desafiando a breve efemeridade ao afirmar uma presença marcante no espaço, ao mesmo tempo em que flutuam sem perder sua leveza original. Os vazios entre os contornos de aço convidam o entorno a se integrar à obra, adicionando outras camadas poéticas que variam conforme o local de instalação.

Abraçando a perspectiva de suas criações como corpos vivos, dotados de respiração, autonomia e, consequentemente transformação, a Carapiá dedica-se à pesquisa do “envelhecimento da escultura” – não à toa, ela evita aplicar acabamentos de conservação à maioria de seus trabalhos. Desse estudo surgem as “Paisagens da Casa Alagada”, uma série em desenvolvimento, que referencia suas experiências pessoais, além de introduzir novas possibilidades de suporte e linguagem à produção. Utilizando o pó desprendido de suas esculturas de ferro, Carapiá desenvolve um pigmento para criar pequenas pinturas oxidadas, que destacam sua gestualidade.

O conjunto de obra de Rebeca também nos propõe uma outra relação com o ferro, revelando suas facetas mais delicadas e distanciando-se das comuns associações com brutalidade, progresso, peso, agressividade ou violência. No entanto, essa subversão não corresponde ao esforço físico envolvido na construção destas peças. A generosidade da artista para com o público a leva a trazer para si o ônus e o peso do trabalho braçal, para devolver ao mundo um elegante balé.

“Entre hoje e ontem para dizer sobre amanhã”

Local: Galeria Leme

Data: 28 de outubro até 24 de janeiro 

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