Retrospectiva da obra de Bispo do Rosário apoia a luta antimanicomial

Itaú Cultural reúne mais de 600 peças e levanta debate sobre as construções sócio-históricas em torno da saúde mental dos seres humanos

Série de retratos do Bispo realizados pelo fotógrafo Jean Manzon e publicados em ensaio na Revista Cruzeiro, de 1942. (Crédito: Matheus Soares)

Hoje, dia 18 de maio, é dia da luta antimanicomial e, não por acaso, também é o dia da abertura da exposição Bispo do Rosário – Eu vim: aparição, impregnação e impacto, no Itaú Cultural. Com curadoria de Ricardo Resende e Diana Kolker, a mostra reúne mais de 600 trabalhos, dos quais 404 são de Bispo do Rosário e os outros de artistas ligados a esta “constelação” que foi formada em torno da produção de Rosário. 

O início da trajetória de Arthur Bispo do Rosário não é conhecido com exatidão, mas tudo indica que ele nasceu em 1909, em Japaratuba, no Sergipe. Ainda jovem, em meados da década de 1920, ele se alistou na Escola de Aprendizes de Marinheiros de Sergipe, iniciando uma curta carreira, da qual seria desligado por indisciplina em 1933, conjugando-a com a atividade de boxer. Após sair da marinha, ele começou a trabalhar como lavador de bondes para a companhia Light, sofrendo um acidente no ambiente de trabalho anos depois que o impediu de continuar a carreira no Boxe. 

Éramos as cinzas da série Pardo é Papel, 2018, Maxwell Alexandre.
Éramos as cinzas da série Pardo é Papel, 2018, Maxwell Alexandre. (Crédito: Matheus Soares)

Este acidente, entretanto, fez com que o caminho de Bispo do Rosário e do advogado José Maria Leone se cruzassem, já que Leone passou a defendê-lo na causa trabalhista movida contra o seu antigo empregador. Rosário passou a morar em uma dependência no quintal do advogado e a trabalhar para Leone como uma espécie de faz-tudo, relação que se manteve entre 1937 e 1960. Foi neste local que, em 1938, Rosário teve uma revelação que mudaria a sua vida: uma visão na qual ele se viu descendo do céu acompanhado por sete anjos. Após a visão, ele caminhou rumo à igreja da Candelária e lá se apresentou aos frades como “aquele que veio julgar os vivos e os mortos”. 

Representações (ao fundo) e Manto (a frente) de Bispo do Rosário.
Representações (ao fundo) e Manto (a frente) de Bispo do Rosário. (Crédito: Matheus Soares)

Este episódio é particularmente interessante uma vez que a sensível condição psíquica de Rosário se revela e ele é encaminhado para o hospício da Praia Vermelha, de onde foi transferido para o lugar que seria seu cárcere por quase toda a vida, a Colônia Juliano Moreira. Apesar de o artista apresentar, indiscutivelmente, indícios desta sensibilidade psíquica, esta mostra assim como a sua data de abertura são conjugadas para contestar a construção social-histórica que rotula, enquadra e marginaliza o que à medicina conveio chamar de “psicopatologias” e coloca sob uma única luz a terrível história dos manicômios. Lugares arquitetados, pensados e construídos para abrigar (e acentuar) o sofrimento humano, tais quais os campos de concentração do Holocausto. 

Representação de Bispo do Rosário
Representação de Bispo do Rosário

Foi enclausurado em sua cela, na Colônia, que Bispo do Rosário passou a se dedicar à sua produção artística usando “materiais que ele conseguia trocando objetos em um lugar onde ninguém podia ter nada”, explica Kolker. Entretanto, é necessário ressaltar que para ele o que ele fazia não eram obras de arte, nem tampouco objetos estéticos ou coisa que o valha. Ele estava simplesmente seguindo vozes em sua cabeça que o obrigavam a construir um inventário do mundo humano, composto de todos os materiais existentes na Terra para uso do homem. Este catálogo, estas “representações”, como ele próprio se referia aos objetos que produzia, seriam apresentados a Deus mais tarde, no dia do juízo final. Esta era a sua missão, e a ela Rosário se dedicou até o fim de sua vida. 

Representação de Bispo do Rosário
Representação de Bispo do Rosário

Em 1980, em uma reportagem de denúncia do jornalista Samuel Wainer Filho sobre as questões críticas da assistência psiquiátrica do Brasil, Bispo do Rosário apareceu na TV Globo junto a seus trabalhos. Ganhou, então, uma certa notoriedade que instigou o fotógrafo e psicanalista Hugo Denizart a fazer um curta metragem intitulado Prisioneiro da Passagem, exibido em 1982, que relata a trajetória de Rosário. No mesmo ano, as obras do artista foram apresentadas numa coletiva organizada pelo crítico Frederico Morais chamada À margem da vida, no MAM do Rio. Rosário, que não se reconhecia como “artista”, nunca mais participou de uma exposição em vida. 

Bispo do Rosário – Eu vim: aparição, impregnação e impacto

“Da mesma forma como Bispo desfez o uniforme e criou seus bordados a partir do fio que o constituia, nós podemos pensar sobre como ele pega esse “uniforme” que chamamos de arte, desfaz e cria”, analisa Diana Kolker. É este o movimento que a mostra empreende demonstrar, este impacto da produção de Bispo do Rosário no “fazer-arte” do cenário da arte contemporânea brasileira e o indiscutível legado que a obra do artista deixou para seus colegas. As obras de outros artistas selecionadas pelos curadores para compor a mostra foram escolhidas não por serem “influenciadas” pelos trabalhos de Bispo em um gesto direto, mas sim por formarem uma composição na qual um diálogo é estabelecido. 

A Negra, de Carmela Gross.
A Negra, de Carmela Gross. (Crédito: Matheus Soares)

Dividida em três níveis expositivos do espaço do Itaú Cultural, o percurso começa no primeiro andar, onde três  pinturas de Maxwell Alexandre, a obra A Negra de Carmela Gross abrem a mostra junto a um tecido bordado por Bispo do Rosário. No percurso, somos levados a uma sala repleta de obras produzidas por Rosário na qual é possível entender a linha de raciocínio traçada pelo artista na constituição de seu “inventário”.  Logo após, você vai se deparar com obras de Rosana Paulino; o registro da performance Natureza da Vida, feita por Fernanda Magalhães na própria Colônia Juliano Moreira, em 2016; e, a performance Tresformance de Arlindo Oliveira, que integra o Atelier Gaia, espaço gerido coletivamente por artistas com o apoio e acompanhamento da curadoria geral e pedagógica do Museu Bispo Do Rosário. 

Obras de Patrícia Ruth, interna contemporânea de Bispo na Colônia.
Obras de Patrícia Ruth, interna contemporânea de Bispo na Colônia.

No primeiro subsolo, a questão das instituições psiquiátricas vem à tona, e quatro manicômios estão em destaque: a Colônia Juliano Moreira, o Hospital do Juquery, o Hospital Psiquiátrico Pedro II e o Hospital Psiquiátrico São Pedro.  Dentre as obras que estão neste nível, encontram-se produções de artistas que foram internos como Edgar Koetz, Aurora Cursino e Ubirajara Ferreira Braga. Ao lado delas estão obras de artistas consagrados como Palatnik, Ivan Serpa, Flávio de Carvalho e Regina Silveira, cujos trabalhos foram impactados pela produção de Rosário. 

Boca do Inferno, de Carmela Gross.
Boca do Inferno, de Carmela Gross. (Crédito: Matheus Soares)

Continuando o extenso percurso rumo ao segundo subsolo, encontramos aquilo que os curadores chamaram de “Efeito Bispo”, que pode ser entendido como o modo por meio do qual as obras de Bispo “reverberaram” na arte contemporânea brasileira. Neste espaço estão estão exibidas as obras de artistas integrantes do Atelier Gaia ao lado de obras de artistas como Maria Aparecida Dias, Paulo Nazareth e Sônia Gomes. 

A enorme exposição, uma das mais significativas já feitas sobre Bispo do Rosário, é de extrema importância e relevância não só para a arte, mas como para a sociedade, que necessita olhar para a condição mental do ser humano de forma singular, tirando os rótulos, as caixas, puxando o fio até desfazer a roupa, o uniforme – como fez Bispo.

Serviço:

Bispo do Rosário – Eu vim: aparição, impregnação e impacto

Local: Itaú Cultural 

Endereço: Av. Paulista, 149 – Bela Vista, São Paulo – SP

Data: De 18 de maio a 2 de outubro de 2022

Funcionamento: Terça a domingo, das 11h às 20h

Ingresso: grátis

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