Se vier, venha na escuta

Exposição do trabalho “homens brancos”, de Marcelo Masagão, no litoral sul da Bahia, gera discussões sobre racismo

No dia 1 de outubro deste mesmo ano, o diretor de cinema e artista branco paulistano Marcelo Masagão inaugurou a apresentação do trabalho homens brancos na praça da vila de Serra Grande, no litoral sul da Bahia. O que deveria ser mais uma das exposições deste trabalho, que já esteve no Centro Cultural Maria Antônia em São Paulo, em praça pública em Braga – Portugal entre outros, acabou por desencadear um levante de parte da população local, em sua maioria homens e mulheres afrodescentes.

A pergunta que ecoa desde então é: Por que este trabalho despertou tanta revolta em um vilarejo com cerca de 6 mil habitantes?

Registro da manifestação realizada no dia 23 de outubro por Paula Borghi.
Registro da manifestação realizada no dia 23 de outubro por Daniela Komives.

Aparentemente buscando compreender essa resposta, Masagão convidou a população para que intervisse em seu trabalho, dando seguimento à um debate artístico. Eis que no dia 23 de outubro ocorreu uma manifestação fronte ao homens brancos. Por meio de faixas, projeções audiovisuais, músicas e poesias, jovens artistas locais expressaram ideias de empoderamento e valorização da cultura negra. Ao final do dia, desenrolou-se um último ato: a intervenção de um adolescente que rasgou o trabalho na presença de seu autor. Ou melhor, de um baiano afrodescendente de 14 anos que se encontra em extrema situação de vulnerabilidade.

Como é possível visualizar, homens brancos se apropria das pinturas de Jean-Baptiste Debret (artista branco francês que aqui chegou em 1815) apagando da cena os personagens brancos e deixando apenas as imagens de homens e mulheres nascidos em África e afrodescendentes em situação de escravidão. Um trabalho que recorre, uma vez mais, ao uso de imagens coloniais de forma descontextualizada. Prática que vem sendo questionada e não mais suportada nos dias de hoje, conforme vemos nos programas dos principais museus do mundo. 

Registro da intervenção no trabalho “homens brancos” após manifestação por Vj Gabiru.

Não é de se surpreender que a apresentação de homens brancos na praça no vilarejo tenha gerado tanta dor e violência, uma vez que este nada mais é do que uma apropriação de Debret apresentada de forma descontextualizada em um território majoritariamente negro. Como discorre a historiadora, curadora e antropóloga branca Lilia Schwarcz Schwarcz a respeito da perversidade das imagens coloniais: “Imagens coloniais não são documentos verídicos ou testemunhos. Elas carregam suas intenções como a afirmação de subserviência e a busca da naturalização da desigualdade racial, ainda vigente no país.”

Prefeito Moacyr Leite de Uruçuca em Serra Grande vendo o trabalho em exposição “homens brancos”. Em suas palavras nas redes sociais: “Essa é uma incrível e renomada exposição internacional, já feita em países da Europa e que hoje está disponível aqui em Serra Grande! O Marcelo, seu criador, é morador da Vila, e nos prestigia com um trabalho tão incrível!”

Nas palavras de Snep, rapper afrodescendente natural de Serra Grande, “Eu sou negro e nada disso me retrata de uma forma de crítica ou algo assim. Isso só mostra como é doloroso nosso sofrimento…” E foi assim que homens brancos chegou para muita gente de Serra Grande: imprimindo a dinâmica de hegemonia (racial, econômica, social e regional) pouco sensível ao contexto em que se encontra, reforçando estereótipos e agredindo uma parcela significante de sua população.

Se este trabalho era uma tentativa de provocar, a resposta veio enquanto movimento, como levante legítimo. Enquanto o filme Bacurau tem em sua sinalização “Se for, vá na paz”, Serra Grande (território que já foi uma vila de pescador e hoje se encontra em vivo processo de gentrificação) parece dizer: “Se vier, venha na escuta”.

RESPOSTA DE MARCELO MASAGÃO (atualização 4/2/22)

ATO ARTÍTICO, ATO POLÍTICO

Uma obra pode ser avaliada com o termômetro da interatividade causada: a quantidade do público que a visualizou, a repercussão nas redes digitais e textos que ela suscitou. Ou mesmo uma interação que resultou na sua destruição. Com cerca de 30 anos de carreira artística tive a oportunidade de ver duas de minhas obras com altíssimos índices de interação. Uma delas foi o filme “ Nós que aqui estamos, por vós esperamos” realizado em 1999.

A outra, foi a exposição “Homens Brancos” que realizei em Serra Grande no mês de outubro do ano passado. Nesta obra, editei 24 aquarelas de Jean Baptiste Debret realizadas entre 1816 e 1830 no Brasil, criando uma só imagem. Uma enorme panorâmica, medindo 30 m x 1 m, que foi impressa em tecido e exibida na praça da vila de Serra Grande, Bahia. Vila que habito há cerca de 150 dias. 

Além de juntar 24 imagens em uma só narrativa, minha intervenção foi apagar de branco todos os momentos em que a entidade “homens brancos” estava presente nas imagens. Comecei mostrando a vida no entorno e nas cidades, onde negros carregavam muitas coisas inclusive humanos brancos em suas redes, havia também uma cena de um negro sendo açoitado em praça pública e no interior das casas servindo seus senhores. Finalizei a narrativa com um pomposo enterro de um homem branco. Fiz questão de não colocar nenhum texto junto com a exposição por ela ser autoexplicativa e muito direta em sua proposta narrativa: ao apagar homens brancos e enterrá-los no final, explicitava um claro questionamento à supremacia branca.

Três semanas depois de inaugurada a exposição fui interpelado na praça por três artistas locaiseduasprofessorasdeescolasprivadasfazendodurascríticasà obra. Diziam que eu não teria legitimidade para falar deste assunto por não ser negro. Que eu não deveria exibir cenas tão humilhantes da história dos negros no Brasil em praça pública e que a cultura negra não é sinônimo de escravidão. Por fim, me intimaram a retirar a panorâmica imediatamente da praça.

Não aceitei remover a obra e convidei os artistas locais para trazerem suas artes para a praça, autorizando inclusive que interviessem na minha panorâmica. No contemporâneo, as imagens invadem nossos corpos de uma maneira infernal. Muito saudável o princípio antropofágico de ressignificação simbólica. Quando esse processo é feito de forma coletiva a coisa fica ainda mais potente.

E foi o que ocorreu! No sábado seguinte a praça foi invadida por artistas e mais de 150 convidados. Várias intervenções foram realizadas em torno da obra: grandes faixas com a inscrição “Vidas negras importam!”, muita música e ao anoitecer diversas imagens em vídeo projetadas diretamente sobre a panorâmica. 

Chamou atenção a imagem de garotos negros dançando eletricamente nas ruas de uma grande cidade, possivelmente Salvador, projetadas sobre as ruas do Rio de Janeiro, pintadas por Debret há 200 anos. Uma dinâmica interessante se deu com a projeção do vídeo nas partes brancas da faixa que ficavam bem mais definidas que nas outras. 

Vivenciamos naquele momento um Ato Artístico potente de diálogo e alargamento de sentidos entre diferentes linguagens artísticas. Ao cair na noite e junto com a chuva o Ato Artístico foi substituído por um Ato Político: um jovem nativo, que não era um artista, rasgou a panorâmica de ponta a ponta. Todo ato humano é, inclusive o ato artístico, um ato político, mas não consigo considerar o ato de rasgar a faixa como um ato artístico entre outras coisas porque o ato artístico vem junto com intenção do artista. 

Acompanhei à distância e não intervi, aliás, só intervi quando a polícia veio prender o garoto. Neste momento declarei que havia presenciado e consentido à “rasgação”, o que de fato ocorreu. Creio que esse Ato Político está ligado à revolta que a exposição causou “em si” e não necessariamente seu conteúdo. Muitos artistas locais têm seus pedidos de exposição na praça negados pela prefeitura. A vila vem vivendo um processo de gentrificação fortíssimo, parecido com o que ocorreu com Trancoso – Porto Seguro três décadas atrás. Muitos nativos venderam suas terras a preço de banana e hoje vivem em condições muito inferiores há de um passado recente.

Há então uma grande tensão entre os nativos e os “chegantes”, nome dado aos forasteiros que decidem viver em Serra Grande. “Como então um artista “chegante” consegue fazer sua exposição e nós não?!?”Tudo isso num momento em que estamos saindo de uma ressaca pandêmica com um presidente genocida que se recusa a vacinar e fala impropérios ou comete atos irracionais a cada 5 segundos. Não quero com essa argumentação desprezar ou ignorar o real sentimento de incômodo que a obra causou em algumas pessoas e grupos da Vila. Peço sinceras desculpas a: @anapaulalavida, @snepnego, @aranda_arandela e a outras pessoas se a obra os ofendeu.

Mas esse é um pouco o dilema da arte exposta em praça pública, desperta uma enorme gama de opiniões/reações, diferentemente de quando ela fica protegida nos higienizados cubos brancos de arte. Ouvi atento um comentário recebido na praça: “Independente da discussão do racismo, o que de mais importante ocorreu foi que as pessoas que estavam alijadas da praça resolveram reocupá-la , como não acontecia há muito tempo em Serra Grande. “De fato, no dia seguinte a praça foi novamente ocupada com um grupo de Maracatu. 

A exposição também levantou a discussão se deveríamos ou não exibir imagens do Brasil Colônia pintadas pelo homem branco e francês, Jean Baptiste Debret? A curadora Paula Borghi defende essa tese. Infelizmente Paula se recusa e não dedica uma linha para discutir a minha obra, condenando fortemente a exibição da produção artística de Debret: “ Um trabalho que recorre, uma vez mais, ao uso de imagens coloniais de forma descontextualizada. Prática que vem sendo questionada e não mais suportada nos dias de hoje, conforme vemos nos programas dos principais museus do mundo. 

Faltou citar quais museus são esses!

Vejo um outro movimento nos museus contemporâneos, quando adotam a política do ACERVO VIVO. Ou seja, liberam suas imagens em alta resolução para que artistas as ressignifiquem. O Rijksmuseum na Holanda faz isso, entre muitos outros.Desde 2018, a obra “Homens Brancos” vem sendo exibida em diversos museus e instituições culturais: Bienal Sur em Buenos Aires, no museu do Castelo em Braga, Portugal, em Parati no decorrer da FLIP e no Centro Cultural Maria Antônia em São Paulo USP – Universidade de São Paulo. Fica então a pergunta: quem decidiria daqui para frente o que deveria e o que não deveria ser exibido “de forma contextualizada”? Um comitê de entendidos da sociedade civil? Então todas as exposições, livros e filmes, antes de serem exibidos teriam que passar pelo crivo destes especialistas para chegar ao público? 

Uma das diretoras da escola pública de Serra pensa diferente. Em uma roda de conversa sobre a exposição, declarou que as imagens são dolorosas, mas devem ser exibidas SIM. Não fazem parte só do passado, mas do presente. Afirmou ainda que não frequenta mais a praça de sua cidade pois o custo de uma cerveja é impeditivo, “a praça foi tomada de brancos que têm dinheiro para se divertir.” Freud nos mostra que a única forma de “superarmos um trauma” é entrando em contato com ele, por mais duro que essa experiência possa ser. Aliás, tenho a convicção que a maioria das pessoas que passaram pela praça nunca tinham visto essas imagens de Debret, sejam elas brancas ou negras. Não dá para cancelar uma exposição pública na praça da mesma forma que se deixa de seguir tal ou qual conteúdo da mídia social. O nível das discussões nas redes digitais geralmente é baixo e tende ao cancelamento. Devemos sim criar comitês com diversos setores da sociedade civil para controlar os satélites e os algoritmos geridos pelas big techs, exclusivamente preocupados com a mercantilização da vida e com um incentivo infernal do umbigismo. Recentemente saíram dois livros que discutem esse assunto de forma brilhante: Políticas da Imagem de Giselle Beiguelman @gbeiguelman e A Super indústria do Imaginário de Eugênio Bucci. 

Reparações históricas são muito importantes e o Brasil é ruim neste aspecto, enquanto Argentina e Chile puniram militares que promoveram a tortura, aqui nada aconteceu, e a prática da tortura prossegue disseminada. Solicitar reparação histórica dos países colonizadores é fundamental, assim como remover estátuas que dignificam facínoras que traficavam negros. Mas cancelar ou dificultar a veiculação das obras de artistas como Debret, Rujendas, Martius, Spix e outros que captaram da sua forma imagens do Brasil, num momento histórico específico, me parece um ultraje ao nosso patrimônio cultural. Aliás, esse material deverá ser usado como prova em possíveis reparações que venham a ocorrer. É claro que suas visões são parciais e recortadas pelo tempo, portanto carregadas de muitas particularidades e preconceitos que devem ser debatidos, mas não cancelados.

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