Victor Leguy

por Caroline Carrion

Tempo de leitura estimado: 3 minutos

Em tempos de interferência russa nas eleições norte-americanas e de fake news, tem se tornado cada vez mais evidente um processo que até há pouco era mais sutil: a história não é algo estático, mas sim um campo de batalha em que se luta pela hegemonia narrativa. A obra de Victor Leguy (1979) dá voz não aos perdedores, mas sim àqueles destituídos de voz, ao mesmo tempo em que expõe, através de um trabalho de pesquisa e interferência em arquivos não-oficiais, o caráter de construto – e, portanto, de ficção – das narrativas históricas tradicionalmente aceitas, simultaneamente desvelando os aparatos de poder que as sustentam.

Nesse sentido, os objetos de seus projetos variam imensamente, mas sua prática revolve em torno do eixo da construção da história coletiva e de questões relacionadas aos espaços públicos, bem como da investigação dos diferentes sistemas de poder, que autorizam ou validam esses espaços e narrativas. Através de processos híbridos de produção que envolvem ampla pesquisa e costumam ser apresentados de forma instalativa, Leguy debruça-se, por exemplo, sobre a controversa histórica da Revolução Constitucionalista de 1932 através de uma instalação site-specific na casa que abrigava a Tofiq House, no Jardim Europa. “Ruptura, Uma Ficção Oficial” (2015), realizada em parceria com Laura Belém, apropria-se do passado da casa, utilizada como ponto de recolhimento de objetos de metal para forjar armas e munições, que eram escassas no estado – fato apontado pela proprietária do imóvel. A instalação criada é composta por objetos metálicos cotidianos, como utensílios de cozinha, dispostos de maneira a flutuar no espaço, acompanhando a planta hidráulica da casa – algo escondido, mas estruturante. A peça era composta ainda por áudios que apontam para as contradições entre os relatos do evento, questionando se há de fato uma única verdade sobre processos históricos.

O artista não é um historiador debruçado em seu gabinete sobre papéis obscuros, não é mais uma instância de produção de significado histórico à revelia das narrativas daqueles que de fato viveram essas histórias. Leguy passa por um processo de imersão das comunidades com cujas narrativas trabalha, e em sua busca por uma intervenção histórica real a partir de arquivos não-oficiais, cria relações de trocas com os membros dessas comunidades e valoriza a história oral e suas histórias pessoais e familiares. Isso se torna evidente no projeto “Realidades ficcionais pouco importantes I”, de 2015, em que o artista procurou estabelecer um diálogo indireto e silencioso com a comunidade boliviana residente próximo a praça Kantuta, no Canindé, em São Paulo. Ao longo de meses, Leguy adicionou a um mural folhetos que seguiam a mesma lógica visual dos anúncios de empregos informais encontrados em murais de trabalho em comunidades imigrantes. Os folhetos de sua criação abordavam fatos como: a exploração do trabalho imigrante; utilização de imagens de povos indígenas pelo governo de Evo Morales; as áreas devastadas e desapropriadas pela madeireira Mabet, patrocinada pelo governo boliviano; e a decisão de suicídio étnico por parte da comunidade indígena Pacahuara. O mural permitia uma reflexão não-tradicional sobre questões às vezes invisíveis, mas que permeiam o tecido mesmo daquela comunidade e, em maior escala, os povos latino-americanos como um todos. Durante o processo, o trabalho foi três vezes removido do local, por exigência da geração mais jovem da comunidade Boliviana residente, que não se sente confortável associada a seu passado indígena.

Como não poderia deixar de ser, o artista se debruça também sobre os próprios mecanismos de normatividade que regulamentam a atividade artística e museológica contemporânea. Seu projeto mais recente, “O Museu Inexistente, vol. 01” (2017), desenvolvido em parceria com o curador Gabriel Bogossian, criou na Funarte algo semelhante a um museu fictício que recontava parte da história do Brasil através de desenhos, filmes, documentos e objetos que buscavam a descolonização do olhar. Desta forma, no centro da exposição residia era o imaginário construído em torno dos Enawenê-Nawê, povo indígena do Mato Grosso que realiza o ritual Yaokwa, reconhecido pelo IPHAN como patrimônio cultural imaterial brasileiro. A partir dessas histórias, o projeto questionava problematizava o papel do museu como detentor do patrimônio cultural e artístico (desprovendo desses valores, portanto, tudo o que se encontra fora dele). Durante o período expositivo, foram realizados debates com outros agentes artísticos e com o público sobre os dispositivos expográficos (criados a partir de “dejetos” de galerias e instituições museológicas, como antigas caixas de transporte), culminando no redesenho coletivo da expografia.

Victor Leguy é bacharel em Desenho Industrial / Artes Visuais (Mackenzie/São Paulo, 2003) e formado no curso de Relações e Linguagens Históricas (USP/São Paulo, 2005/06). Realizou individuais na Funarte (2017), Temporada de Projetos (Paço das Artes, 2014) e no MARP-Museu de Artes Ribeirão Preto (2014), entre outras. Participou de diversas mostras coletivas no Brasil e no exterior, como a 15ª Bienal de Istambul (2017) e Frestas – Trienal de Artes (Sesc Sorocaba, SP, 2014). Recebeu o Prêmio Aquisitivo 38º SARP/MARP (2013) e o Prêmio CQ-Creative Quaterly 26 (EUA, 2011-12). Participou das residências Arteles Residency (Haukijarvi, Finlândia, 2013) e Húmus (Padova, Itália, 2016)

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