Zendaya e Hunter Schafer encarnam obras-primas em Euphoria

Sam Levinson falha ao usar obra de Botticelli, Magritte e Frida Kahlo para esbanjar orçamento, habilidade técnica ou conhecimento

Tempo de leitura estimado: 7 minutos
O nascimento de Vênus em Euphoria
O nascimento de Vênus em Euphoria
O nascimento de Vênus, de Sandro Botticelli
O nascimento de Vênus, de Sandro Botticelli

Cinéfilos e art lovers só falam de uma coisa nos últimos dias: a chuva de referências do quarto episódio da segunda temporada de Euphoria – uma série adolescente que tem conquistado muitos pelo bom roteiro, atuação impecável (especialmente de Zendaya) e pela estética impactante.

O episódio intitulado You Who Cannot See, Think of Those Who Can tem um punhado do habitual – adolescentes agindo de maneira autodestrutiva, fazendo uns aos outros chorar, por razões que não fazem muito sentido e adultos com saudades dos tempos de adolescentes. Mas o começo foi diferentão. Rue (Zendaya) está na cama com Jules (Hunter Schafer) quando fala para o espectador: “Acho que você não tem ideia do quanto eu amo a Jules”. Em seguida, a dupla começa a aparecer em encenações de cenas de grandes obras de arte e de filmes – dos clássicos ao cults. Todos eles falam, claro, de amor. Vênus de O Nascimento, Vênus de Sandro Botticelli; Os Amantes, René Magritte; Diego em minha mente (Autorretrato como Tehuana), de  Frida Kahlo; e o retrato de Yoko Ono e John Lennon eternizado por Annie Leibovitz. Entre as referências do cinema, estão cenas também clássicas de filmes como Ghost – Do Outro Lado da Vida; Titanic, O Segredo de Brokeback Mountain.

Mas será que Sam Levinson, criador da série, Marcell Rév, diretor de fotografia, entendem mesmo de artes plásticas? Ou só jogaram muito aleatoriamente um monte de referências que vão do clássico ao relativamente contemporâneo para “pagar de culto”?  A verdade é que a sequência de reproduções de obras pareceu solta e aleatória: não contribui para a construção da trama ou dos personagens e a escolha das obras … .well, poderia ser mais inusitada considerando que estamos falando da série mais cool do momento.

 Quero levantar duas as ressalvas aqui. A começar pela seleção…um tanto óbvia! O beijo proibido de Magritte, o nascimento da deusa do amor e da beleza e um autorretrato de Frida Kahlo com a imagem de Diego Rivera na sua testa para falar de amor? Really? “Flowers? For spring? Groundbreaking!”, me senti Miranda Priestly em Diabo veste Prada vendo essas cenas. 

Os Amantes, em Euphoria
Os Amantes, em Euphoria
Os amantes, de René Matritte
Os amantes, de René Magritte

Os Amantes, René Magritte retrata um dos beijos mais conhecidos de toda a História da Arte (capaz de perder só para o Gustav Klimt)  e ganhou ainda mais visibilidade durante a pandemia do Covid-19 pela impossibilidade do toque físico – os lenços cobrindo os rostos dos amantes fazem a vez das máscaras.  Como você já aprendeu aqui no AQA, O nascimento de Vênus, de Sandro Botticelli, representa simplesmente a deusa do amor e da beleza – bastante apropriado para Jules. Nesta clássica  nascendo de uma concha – metáfora para vagina, fertilidade e prazer feminino – cobrindo algumas partes do corpo. Do lado direito do quadro, está a deusa da primavera, símbolo de renovação, esperando Vênus para protegê-la com o manto florido. O quadro foi considerado pagão por ser a primeira representação de uma mulher nua na Itália que não era Maria. 

Diego em minha mente (Autorretrato como Tehuana) em Euphoria
Diego em minha mente (Autorretrato como Tehuana) em Euphoria
Diego em minha mente (Autorretrato como Tehuana), de  Frida Kahlo
Diego em minha mente (Autorretrato como Tehuana), de Frida Kahlo

Para fechar com chave de ouro a banal seleção de obras de arte, Levinson e Rév fantasiaram Hunter Schafer de Frida para reproduzir o autorretrato que a artista fez quando se divorciou de seu marido, o também artista Diego Rivera. A obra também é conhecida como Diego em Meu Pensamento – título que escancara o principal combustível criativo da  artista mexicana: paixão. Enquanto Kahlo se apresenta com uma foto de Diego na testa, em Euphoria, Jules aparece com uma imagem de Rue na testa. Frida Kahlo, vale lembrar, é, entre todas as artistas mulheres,  o nome mais buscado nas pesquisas do Google e nas mídias sociais do mundo! 

Mais que falar sobre amor, a escolha de Kahlo e Botticelli pode ter uma genuína vontade de subverter, por meio da encenação das pinturas, os padrões de beleza feminina. Enquanto Vênus é a própria deusa da beleza, Frida representava sua monocelha sem medo do que era esperado de uma mulher na época. E talvez essa seja, afinal, a melhor conexão com Jules. Levinson coloca uma mulher trans em imagens tradicionalmente mantidas por mulheres cisgênero e, com isso, pode estar tentando complexificar imagens já estão num incosciente coletivo. Mas não deu certo. Não há nada de complexo aqui ou em qualquer momento dessa séri, muito pelo contrário. Parece que esta é uma sina de Euphoria: os floreios visuais frequentemente atropelam possíveis sentidos e significados. 

John Lennon e Yoko Ono, em Euphoria
John Lennon e Yoko Ono, em Euphoria
John Lennon e Yoko Ono, por Annie Leibovitz
John Lennon e Yoko Ono, por Annie Leibovitz

A única referência mais interessante, quando pensamos na história de Rue e Jules, é a comparação com Yoko Ono e John Lennon no momento em que a série reproduz a famosa cena dos dois abraçados eternizada por Annie Leibovitz poucas horas antes de John ser assassinado. O poder dessa imagem não está apenas na sua força estética – ele abraça Yoko nu, totalmente vulnerável, em posição fetal -, mas também pelo fato da realidade ter superado, aqui, qualquer ficção digna de Leão de Ouro. A dupla mais amada e odiada do mundo cultural cai bem para Rue e Jules. 

Mas o que mais incomodou não foi exatamente a escolha das referências, mas o uso delas da forma mais óbvia possível. Parece que o diretor ama cosplay ou se empolgou com o #gettymuseumchallenge (movimento que tomou conta das redes durante o isolamento social, no qual público era incentivado a reproduzir grandes obras de arte, e foi adotado pelos maiores museus do mundo!) e resolveu reproduzir as cenas com o dinheiro e equipe que tinha para produzir Euphoria.  Parece que  Levinson queria, na verdade, esbanjar um tipo de poder muito comum no mercado de arte: orçamento aliado ao conhecimento. 

Quem acompanha o AQA, sabe que muitos diretores, roteiristas e cenógrafos bebem na História da Arte, mas trazem esse tipo de conhecimento de formas mais sutis e inteligentes. Um belo exemplo é a série The Undoing – apesar de não chegar nem aos pés de Euphoria quando o assunto é roteiro, trama ou direção de fotografia, a produção de David E. Kelley, com fotografia de Anthony Dod Mantle e produção de Nicole Kidman,traz nuances e narrativas da história da arte para tornar os personagens mais complexos. As referências, ali, de fato agregam. E não é o que acontece em Euphoria. Outra união muito bem feita entre a sétima arte e as artes visuais acontece em La Voz Humana, de Pedro Almodóvar. A tela Vênus e Cupido, Artemisia Gentileschi, aparece no único cenário do monólogo de forma precisa e profunda – o cineasta espanhol fala não só sobre os protagonistas e as mulheres à beira de um ataque de nervos, mas também resgata uma artista barroca que esteve por muito tempo esquecida da história da arte. Mostrou que está conectado com o sistema e faz o dever de casa. Outro exemplo interessante é Dark, cada obra que aparece nas cenas é uma pista para o quebra-cabeça entre espaço e tempo proposto na série.

A Persistência da Memória, de Salvador Dali, aparece na primeira temporada
A Persistência da Memória, de Salvador Dali, aparece na primeira temporada

O flerte com a história da arte e do cinema entre as baladas de Euphoria começou, na verdade, na primeira temporada e, naquele momento, as escolhas dos diretores foram muito mais felizes. No episódio de apresentação de Jules, ela é levada a uma instituição psiquiátrica pela mãe. No consultório, há uma reprodução da obra A Persistência da Memória, de Salvador Dalí. Ela olha para a tela e logo pergunta ao médico que parecia doce: “Esse artista não foi um grande abusador?” Um recado é dado ali: a própria Jules seria, no futuro, abusada por uma sequência de versões de Dali. 

Jules na festa de Halloween, em Euphoria
Jules na festa de Halloween, em Euphoria
Romeu e Julieta
Romeu e Julieta
Jules na festa de Halloween, em Euphoria
Jules na festa de Halloween, em Euphoria

A escolha da obra foi certeira: Além de tentar representar o próprio tempo e a memória, Dali mistura elementos irreais – relógios derretidos – com imagens familiares, aproximando a cena de um sonho ( ou uma viagem de Rue?). No canto inferior direito da tela, ele pinta algumas formigas. O pintor surrealista não gostava de formigas e quando as colocava nas suas obras era com o objetivo de simbolizar a putrefação. Mais uma dica do que poderia acontecer com os protagonistas. 

Já no episódio da festa de Halloween, Jules usa exatamente o mesmo figurino de Julieta, interpretada por Claire Danes, na versão de Baz Luhrmann de Romeo + Juliet, na fatídica noite em que ele conhece Romeu. A escolha do figurino de Jules é um sinal de que aquela noite que começara tão doce e romântica poderia atingir um super dark side! 

Estes dois exemplos são prova de que Sam Levinson e Marcell Rév sabem o que fazem, mas deram uma pirada no episódio tão comentado. É preciso avisá-los que eles não precisam copiar a História da Arte de forma tão literal para criar cenas mágicas e plots complexos. A série é, independentemente dos grandes mestres, estéticamente sedutora. Os diretores só precisam acreditar mais neles mesmos. Este mesmo episódio, por exemplo, tem momentos lindos de Jules no contraluz…Caravaggio curtiria.  

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