A cidade de dentro: uma conversa com Kitty Paranaguá

por Julia Lima

Tempo de leitura estimado: 4 minutos

Quando o Rio fez 450 anos, a artista Kitty Paranaguá queria fazer um projeto a partir da paisagem carioca, contexto que move e pauta boa parte de seu trabalho autoral. Atuando no campo da fotografia de arquitetura por muitos anos, Kitty sempre se interessou pela ideia e conceito da casa brasileira e, em 2015, uniu esse fascínio ao desejo de falar sobre a paisagem da cidade.

No início, estava pesquisando a região do cais do porto, que estava sofrendo um profundo e complexo processo de transformação e recuperação (e gentrificação), o que também incluía a implosão do viaduto da perimetral que atravessava a região. Diante da impossibilidade de registrar o evento de perto, subiu para o vizinho Morro da Providência, onde Dona Jura iria receber um monte de jornalistas em seu restaurante. De lá, a vista impactante daquele ponto a fez pedir: “Dona Jura, posso voltar aqui com essa foto pra fazer um retrato seu?”.

Assim começou a série intitulada posteriormente de Campos de Altitude. A ideia da artista se concretizou em uma meta-imagem: projetou dentro da casa de Dona Jura a foto da vista do restaurante, fotografando então a sobreposição resultante. Esse modo de operar acabou se transformando em um procedimento, repetido em diversas outras casas: “Eu levei aquela foto pra casa dela e fiz a primeira imagem. Fui fazendo contatos com os morros, falava com algumas pessoas antes e aí foram acontecendo coisas, as pessoas me abrindo portas.”

A série é toda muito impactante, composta por cenas intrincadas, cheias de camadas – reais e metafóricas. Mas também é muito diversa, refletindo paisagens deslumbrantes dentro de espaços cobertos de relógios, vazios, esperando a projeção, que servem como espaço de trabalho e moradia, que são decorados de maneira singular. O processo de encontrar esses lugares para a realização do projeto é parte integral do trabalho. “Foram encontros muito legais, porque eu cheguei no morro Chapéu Mangueira, por exemplo e não tinha nenhum contato lá, não sabia como ia fazer. Tinha uma feira de livros, comecei a fotografar paisagem e aí fui falar com uma mulher e contei do projeto. Ela disse que tudo bem, que eu podia ir na casa dela. Ela depois me contou que sempre quis ter um retrato tirado. Foram encontros orgânicos, do destino também”.

Em outras comunidades onde também não tinha conhecidos ou acessos diretos, Kitty se inscrevia em visitas guiadas que acontecem para turistas, uma carioca reconhecendo a própria cidade, os próprios “vizinhos”. Surpreendentemente, a resistência das pessoas em serem retratadas para um projeto artístico foi muito menor que a esperada. “Todo mundo foi receptivo”, relembra a artista, que mantém até hoje uma relação pessoal com seus retratados. Todos os participantes do projeto receberam uma cópia das fotografias realizadas em seus lares, e também recebem uma porcentagem de todas as vendas.

Depois da conclusão de Campos de Altitude, o projeto se tornou exposição, já montada no Rio de Janeiro e até na China. Este ano de 2020 era a vez de trazer o trabalho para São Paulo. A geografia das duas capitais é muito diferente, o que cria mais uma camada de leitura dessas imagens no contexto paulistano. Todo mundo sabe que o Rio de Janeiro se configura no espaço constrangido entre o morro e o mar, mas o principal aspecto dessa obra reside menos nos aspectos geográficos da cidade e mais na importância da casa para as pessoas, na relação continuada e colaborativa entre fotógrafo e fotografados, na instável separação entre o público e o privado, na explosão de significados quando a praia invade a sala de estar.

A mostra, que não abriu ainda ao público por causa do momento de crise da epidemia do coronavírus, estava prevista para inaugurar no Museu da Casa Brasileira nesta semana. Os espaços culturais estão fechados em São Paulo mas, queiramos ou não, ainda nos é essencial estar perto de arte. As fotografias de Kitty estão à espera do dia que o público possa visitá-las, encontrar as suas potentes narrativas, conversar com suas histórias, ouvir os depoimentos de seus personagens. Até lá, ficamos de dentro das nossas casas apreciando pela tela do celular e do computador as casas do morro, repletas de paisagem.

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