Lygia Pape: potência e versatilidade

por Julia Lima

Depois de passagens bem-sucedidas por Nova York, Londres e Madri nos últimos anos, a cidade de Milão recebeu em 2019 uma grande exposição de uma das mais importantes artistas brasileiras. A Fondazione Carriero, que recentemente realizou mostras de Sol LeWitt e Giulio Paolini, teve todos os andares ocupados por trabalhos que percorreram toda a prolífica carreira de Lygia Pape, incluindo o “Livro do Tempo” e uma versão da icônica “Ttetéia” – cujas delicadas linhas douradas formando cubos esticados contrastavam com a decoração barroca da sala do palazzo que ocupava.

Lygia Pape, Ttéia 1 C, 2000, ph: Julia Lima

Agora Pape será finalmente mais uma vez objeto de uma exposição no Brasil, a ser realizada no Itaú Cultural, em São Paulo. A instituição vem há muitos anos promovendo significativas mostras dedicadas a nomes centrais e essenciais da arte brasileira, com destaque à monografia sobre Lygia Clark realizada em 2012.

A artista nasceu no Rio de Janeiro, em 1927, e começou a produzir no início da década de 1950, tendo se associado ao grupo de artistas ligados à arte concreta no Rio de Janeiro – que, liderados por Ivan Serpa, reuniam-se, estudavam e ativavam os espaços do MAM. Pape chegou, inclusive, a participar da I Exposição Nacional de Arte Abstrata, no Hotel Quitandinha, em Petrópolis, apresentando algumas gravuras geométrias ao lado de nomes como Abraham Palatnik, Antonio Bandeira, Fayga Ostrower, Lygia Clark e Aluísio Carvão, entre muitos outros.

Balé Neoconcreto I

Mas, foi no final da década de 1950 que seu trabalho mudou radicalmente de direção, com a co-assinatura ao Manifesto Neoconcreto (que postulava uma mudança de abordagem na relação entre objeto e espectador) e com a criação do “Balé Neoconcreto I”, idealizado junto de Reinaldo Jardim. A peça não contava com bailarinos visíveis ao público, mas sim com grandes caixas coloridas cilíndricas e retangulares que abrigavam os corpos dançantes e que se moviam pelo espaço de um lado para outro e de frente para trás, entrando e saindo dos focos de luz da boca do palco.

Este trabalho operou uma transformação na maneira de Pape encarar o papel da obra dentro da relação que se estabelece entre artistas, trabalhos e públicos, aplicando os conceitos postulados pelo neoconcretismo da desmaterialização da obra de arte e da construção de sentidos aberta e coletiva. A partir daquele momento, Lygia Pape passou a experimentar variados suportes para além da gravura e da pintura, incluindo performances e vídeos em seu repertório. Ainda em 1959, realizou o “Livro da Criação”, composto por 118 unidades de papel em várias formas e cores que podiam ser manuseadas pelo leitor, acentuando a participação do público em seu trabalho, e depois o “Livro do Tempo” e o “Livro da Arquitetura”, além do “Livro da Luz” e o “Livro dos Caminhos”.

Por quase 40 anos a artista construiu um corpo de trabalhos incomparável, engajando-se politicamente no combate à ditadura militar no país e produzindo alguns trabalhos combativos e de denúncia da violência estatal, contra a censura e pela liberdade.

Entre as obras criadas durante o auge do regime militar, i.e. entre 1968 e 1975, Pape nos deus algumas das mais contundentes imagens a habitar a iconografia da arte brasileira, com destaque para o “Divisor” – um grande tecido cheio de aberturas por onde as pessoas podiam colocar a cabeça e tentar se locomover coletivamente, aceitando o fluxo ou resistindo à direção escolhida pelo restante do grupo. A primeira vez que a obra foi ativada, em 1968, mais de 100 pessoas vestiram o Divisor no jardim do MAM-RJ, entre as quais diversas crianças da Favela da Cabeça.

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