Entenda como ‘Dos Brasis’ vai marcar a História da Arte Brasileira

Conversamos com os curadores de Dos Brasis, a mais abrangente exposição dedicada exclusivamente à produção de artistas negros do Brasil

Waleff Dias, Sem título, da série Até os Filhos do Urubu Nascem Brancos, 2019. Foto: Pablo Bernardo

“Brasil, meu nego, deixa eu te contar a história que a história não conta” – os versos do enredo “Histórias para Ninar Gente Grande”, entoados pela Mangueira em 2019, parecem anunciar o cerne da exposição Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro. “Dos Brasis que se faz um país de Lecis, Jamelões”, continua o samba que inspira o nome da exposição, referenciando à sambista Leci Brandão, primeira mulher a integrar a ala de compositores da Mangueira, e ao intérprete Jamelão, uma das maiores vozes que já ecoaram pela Marquês de Sapucaí, evocando os brasileiros “que não estão no retrato”.

O que é a Dos Brasis? 

A mostra, que abrirá dia 02 de agosto, no Sesc Belenzinho, reunirá cerca de 240 artistas negros, de todos os estados do Brasil, sob curadoria de Igor Simões, em parceria com Lorraine Mendes e Marcelo Campos. Mas Dos Brasis é mais do que uma exposição, é um projeto idealizado por Igor e Hélio Menezes, que desde 2018, quando foram chamados para produzir uma formação com os técnicos de artes visuais dos Sescs, estão debruçados a pesquisar nomes de artistas invisibilizados. “Naquele momento político do país, em que estávamos lidando com um esforço coordenado de sucateamento da cultura brasileira, com o retrocesso das políticas afirmativas, das representações de mulheres, negros e indígenas, não nos parecia fazer sentido apenas olhar para o que já estava na coleção. Então, a gente começou a tensionar questões da exposição e esse tensionamento foi acolhido pelo Departamento Nacional e pelo Sesc Belenzinho.”, conta Simões.

A partir disso, a dupla encabeçou pesquisas in loco em todas as regiões do Brasil, buscando, inclusive, além das fronteiras das capitais, alcançando cidades do interior e comunidades quilombolas, por exemplo. Essas ações desdobraram-se em programas como palestras, leituras de portfólio, exposições, entre outros, cujo objetivo se dava em trazer ao público vozes negras da arte brasileira. Além disso, no ano passado, eles criaram o programa online Pemba: Residência Preta, que dentre as mais de 450 inscrições, selecionou 150 residentes para serem orientados por Ariana Nuala, Juliana dos Santos, Rafael Bqueer, Renata Sampaio e Yhuri Cruz. A residência concebeu um espaço seguro e exclusivo para pessoas pretas e contou com aulas de grandes pensadores nacionais como Denise Ferreira da Silva, Kleber Amâncio, Renata Bittencourt, Renata Sampaio, Rosana Paulino e Rosane Borges. 

Sobre a importância de se trazer um número expressivo de artistas pretos, sem cair na lógica colonialista de catalogação 

A exposição chega para questionar as narrativas e sistemas hegemônicos das artes do Brasil, que privilegiaram, ao longo de toda história, artistas, curadores, críticos e historiadores brancos, usando referências europeias ou norte-americanas. É isso o que o curador chama de “arte branco-brasileira”: “Se a arte produzida por pessoas pretas é a arte afro-brasileira, então a gente tem que pensar qual é o nome da outra. Só pode ser arte branco-brasileira.”

Rafael LaCruz, Centenário de Lima Barreto. Foto: Nanda-Bombanato

Embora a expografia não se apoie em uma sequência cronológica e a exposição não busque dar conta de um panorama geral da variedade das produções de artistas negros, Dos Brasis estabelece diálogos poéticos entre artistas desde o século XVIII até a contemporaneidade, na tentativa de mostrar que não existe uma “onda de artistas negros” nos anos recentes. “O silêncio dos artistas negros nunca existiu. O que existiu foi uma escuta seletiva”, ressalta Simões.

Nesse sentido, se faz necessário inaugurar exposições saturadas, com números abundantes, e que transcenda os espaços físicos de uma instituição. Ao mesmo tempo, o time curatorial explicou que desde o início houve uma preocupação em não cair nos moldes colonialistas de mapeamento, que enumeram pessoas em enciclopédias sem estabelecer conexões entre elas. “Já que uma lista é muito fácil de ser riscada – como se fosse uma lista de festa –, a gente procura, em Dos Brasis, trazer a permanência”, exemplifica Campos.

Outro valor fortemente defendido em Dos Brasis é a pluralidade. Num primeiro sentido, os curadores reconhecem que, apesar do pioneirismo da proposta numerosa, o projeto é fruto do esforço e trabalho das muitas mãos que os antecederam. Lorraine, ainda, acrescenta e revela sua esperança futura: “Eu acho que Dos Brasis vem com essa audácia de desejo, de projeção e de possibilidade. Meu desejo é que os jovens, outros curadores ou outros artistas, apareçam para continuar a pavimentar esse caminho junto com a gente e depois a gente.” Mas num segundo sentido, podemos pensar em pluralidade dos próprios trabalhos: “Muitas vezes, pelo que a gente está percebendo nos recentes anos, essa produção preta tem sido majoritariamente consumida na pintura, e na pintura figurativa de artistas jovens, homens, negros. Então acho que essa exposição é o momento onde a gente amplia esse diálogo com obras que trazem desafios materiais e expositivos, que provavelmente não entrarão no mercado”, explica Campos. 

Conheça os núcleos propositivos e algumas de suas obras

Daniel Lima, Arrastão de Loiros, 2005

O núcleo “Branco Tema” refere-se termo empregado pelo sociólogo brasileiro Guerreiro Ramos no seu livro “Patologia Social do Negro Brasileiro (1955) e traz obras que parodiam a categoria “negro-tema”, cunhada academicamente por muitos anos, e questionam a suposta “neutralidade” da branquitude. Aqui encontramos obras como “A dama de branco” de Arthur Timótheo da Costa – um dos precursores do Modernismo, mas que não esteve na Semana de Arte Moderna de 1922 – e o irônico vídeo  “Arrastão de Loiros” de Daniel Lima. Mas este é propositalmente o menor núcleo da exposição: “É quase como se afirmassemos: ‘temos muita coisa para falar, não vamos ficar discutindo isso, mas queremos mostrar que a gente também faz isso’.”, desenvolve Simões. 

“Negro vida”, também baseado nos conceitos de Guerreiro Ramos, traz a multiformidade da existência preta, distante das perspectivas unificadoras produzidas por grande parte da intelectualidade branca. Neste núcleo encontramos, por exemplo, a obra comissionada da artista baiana Rebeca Carapiá, que trabalha com materialidades que poucas vezes são associadas à produção de artistas mulheres, como ferro e forja, e pauta o controle e a ação do tempo a partir da ferrugem. Os curadores criam suspense sobre o trabalho do artista mineiro, Jorge dos Anjos, escultor que redimensiona a tradição concretista, que trará uma obra comissionada “que abre a exposição”. 

Panmela Castro, Rosana Paulino, da série artists in the studio, 2022

“Amefricanas” e “Organização já” são núcleos pensados a partir da escrita da Lélia Gonzalez. O primeiro dá protagonismo a figuras de mulheres inseridas intimamente nos movimentos sociais, ao mesmo tempo que celebra a vida comum e cotidiana. A exemplo disso, encontramos o retrato que a artista Panmela Castro fez de Rosana Paulino. Sobre a obra, Lorraine reflete: “É uma artista negra de uma geração mais recente, retratando aquela pessoa que, ao meu ver, é uma das grandes damas, aquela que é responsável pela carreira de muitos outros artistas e também pesquisadores. É uma daquelas figuras a quem a gente tem que prestar reverência.” 

Em sequência, “Organização já” apresenta as diferentes maneiras que a população negra encontrou para se organizar e resistir das violências da escravidão e da colonialidade. Aqui, encontramos a série de imagens chamada “Arturos”, de Eustáquio Neves, que retrata uma comunidade negra remanescente de quilombos em Contagem, Minas Gerais. 

Mônica Ventura, O sorriso de Acotirene, 2018 – vista da exposição Histórias Feministas – MASP, 2019.

“Baobá”, único que não tem escritor ou escritora como referência, é guiado pela figura de Emanuel Araújo “e outros e outras artistas e obras que continuam sendo árvores, ramificando, florescendo, frutificando e fincando raízes”, como diz o texto curatorial. Este núcleo contempla a obra “O Sorriso de Acotirene”, de Mônica Ventura, uma instalação que acumula materiais como cabaças, miçangas, sisal para recontar a história de Acotirene, matriarca no Quilombo dos Palmares que foi apagada dos livros de história. Nas palavras da artista, a personagem é “a força feminina que encontramos em nossas mães, avós, irmãs, tias, professoras e amigas, uma conselheira de pulso forte”.

Tendo como ponto de partida o pensamento da historiadora e ativista pelos direitos humanos de negros e mulheres brasileira, Beatriz Nascimento, o núcleo “Romper” reúne artistas que, em suas produções, interrogam narrativas da história canônica em suas tentativas de exclusão daqueles que formam a maioria deste lugar assimétrico nomeado Brasil. Aqui, Rosana Paulino apresenta obras da série Geometria à Brasileira, que questiona o olhar estrangeiro dos viajantes que percorreram o Brasil durante o século XIX.

Por último, e nada menos importante, “Legítima defesa” parte de uma frase atribuída ao Luiz Gama, que diz: “Todo escravo que mata o senhor age em legítima defesa”. O escritor, que foi escravizado aos dez anos de idade, tendo sido vendido pelo próprio pai, aos 17 anos pleiteou sua própria liberdade, tendo que provar que ele nasceu livre. O núcleo é, portanto, sobre as várias possibilidades das armas, mas não necessariamente sobre a violência e cabe aqui citarmos o artista baiano Augusto Leal integra o espaço com duas obras. A primeira, “O Jogo!”, consiste em um trabalho interativo, que usa do lúdico para referir-se ao futebol como símbolo de um país moldado sob o mito da meritocracia como justificativa para opressões sobre pessoas negras. A instalação traz 36 traves de gol, cujas cores aludem à diferentes tons de pele, dispostas de maneira que as maiores, que possuem tons mais claros, estão mais próximas do centro onde se encontram os jogadores, enquanto as menores e de tons mais retintos, ficam mais distantes e, consequentemente, mais inacessíveis para marcar pontos. Já a segunda, chamada Sinalização Profética, é um trabalho inédito comissionado pelo Sesc para a exposição.

Augusto Leal na Mostra 3M
O Jogo! (2022) de Augusto Leal na Mostra 3M. Foto: Karina Bacci

Reverberações da mostra pelos próximos 10 anos

O legado de Dos Brasis continuará ecoando, pelo menos, pelos próximos dez anos, com a itinerância por todas as unidades do Sesc. Nela, todos os núcleos estarão representados, ainda que com recortes variados de acordo com os espaços que a receberão. “Essa itinerância tem dois motivos relacionados ao Sesc: uma é a vontade da instituição de ampliar a sua coleção, trazendo mais artistas negras, negros e negres; e a outra é a possibilidade de devolver ao Brasil essa pesquisa, compreendendo-o sob uma geografia mais ampliada”, explica Campos.

Vale ressaltar a importância desse acontecimento em uma instituição como o Sesc, que além de alcançar diversas regiões deste país continental, entende e aplica acessibilidade como um projeto amplo, investindo na produção de conhecimento, na oferta de ingressos gratuitos, em localizações de fácil chegada, entre outras iniciativas únicas. O Sesc consegue oferecer uma exposição em nível institucional, como nenhum museu ou galeria. E mais: com a abertura de Dos Brasis no Sesc Belenzinho, somarão-se três unidades do Sesc na capital paulista dedicadas exclusivamente à obras de artistas negros (incluindo Bom Retiro com “Karingana – Presenças Negras no Livro para as Infâncias” e Pinheiros com “Retratistas do Morro”), o que demonstra que o posicionamento afirmativo constante de visibilidade da instituição para com as produções afro-brasileiras.

ABEBÉ, de Keila Sankofa
Keila Sankofa, Abebé, 2021

Mas diante de uma década de vigência, se trava outro desafio: como se manter relevante e atual por tanto tempo? Simões comenta o desejo de, a cada viagem que a exposição fizer, se somem novos artistas integrantes, provindos destas regiões. Mas ele nos explica que o propósito do projeto se dá justamente em seu encerramento: “A gente tem uma pretensão – que a gente não tem como afirmar se ela vai ser realizada – de encerrar a pergunta ‘onde estão os negros na arte brasileira?’, pelo menos no campo poético, porque esse questionamento ainda é válido institucionalmente e dentro dos sistemas da arte. Eu realmente espero que em dez anos também haja uma dimensão de obsolescência dessa exposição. Que haja uma dimensão de esgotamento desse debate por completa falta de necessidade dele.”

Serviço:

DOS BRASIS – ARTE E PENSAMENTO NEGRO   

Período expositivo: 2 de agosto de 2023 a 28 de janeiro de 2024
Local: Sesc Belenzinho  
Endereço: Rua Padre Adelino, 1000, Belenzinho – São Paulo
Horário de funcionamento:  Terça a sábado, das 10h às 21h. Domingos e Feriados, das 10h às 18h 
Entrada gratuita    

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