O Pintassilgo e as coisas que perdemos no fogo

Adaptação de John Crowley para vencedor do Pulitzer de Donna Tartt aborda trauma, fraude e roubo de arte, mas fica aquém da proposta

Tempo de leitura estimado: 4 minutos

A potência da arte para unir gerações é o fio condutor do romance O Pintassilgo, de Donna Tartt, adaptado para o cinema em 2019 por John Crowley. O vencedor do Prêmio Pulitzer de 2014 acompanha a vida do menino Theodore Decker, virada do avesso quando, aos 13 anos, presencia um atentado ao Metropolitan Museum of Art de Nova York em que sua mãe, Ashley, é vítima fatal.

Disponível no serviço de streaming do Telecine, o filme tem a dura tarefa de adaptar o denso livro de 700 páginas, repleto de reviravoltas inusitadas e intensa narrativa em primeira pessoa de Decker. Atravessado pelo luto, a perda completa de suas referências e o desespero de ter cometido um crime que julga imperdoável na confusão do momento – o furto da pintura que dá nome às obras – o formato dá um tom profundo e sensível ao romance, que encanta o leitor apesar de sua longa extensão.

O Pintassilgo. Carel Fabritius, 1654.

A obra roubada tem em si uma história própria de tragédia e mistério. Ela é de autoria de Carel Fabritius, pintor holandês do século XVII, morto em um incêndio causado pela explosão de uma fábrica de pólvora em 1654. No episódio que encerrou sua curta vida, a obra do pintor quase foi destruída, e o que sobrou acendeu a hipótese do enorme potencial criativo e técnico de Fabritius no uso da luz e perspectiva em sua obra, escapando da forte influência de seu mestre Rembrandt.

As peças perdidas na história do pintor e os aspectos não contados de sua genialidade se refletem nas lacunas na vida do perturbado Theo, e das inevitáveis perguntas que rondam a mente de quem sofre um trauma de tal natureza. O que a vida teria sido sem a tragédia que se desdobrou?

Um torturado Theo Decker (Ansel Elgort) aguarda em um quarto de hotel em cena do filme.
Um torturado Theo Decker (Ansel Elgort) aguarda em um quarto de hotel em cena do filme.

O filme, de sua parte, deixa outras lacunas – se apegando somente aos acontecimentos principais da história, Crowley deixa de lado a trama interna de Theo, abrindo mão do encantamento e sensibilidade da obra de Donna Tartt. Sem o viés das reviravoltas psicológicas, a adaptação perde a linha que torna coesa e significativa sua vida e sua relação com a pintura, alvo de repetidos roubos ao longo da trama e cuja posse Decker tenta freneticamente recuperar.

Contada em sua própria voz, a história no livro tem os tons da paranoia e depressão de Theo, e a maneira como seu sofrimento e pânico tingem sua visão do mundo. O vício em opioides adquirido em sua temporada com o pai, um viciado em apostas, e a madrasta cocainômana em Las Vegas, e a obsessão de Theo por sua amiga Pippa – também sobrevivente do atentado – colaboram para mostrar como o garoto progressivamente se distancia da realidade, espiralando em seu próprio caos mental e sua profunda carência.

Theo Decker (Oakes Fegley) e Boris Pavlikovsky (Finn Wolfhard) em cena do filme em Las Vegas.
Theo Decker (Oakes Fegley) e Boris Pavlikovsky (Finn Wolfhard) em cena do filme em Las Vegas.

Carregada por Theo como o talismã do qual sua existência depende, a pintura do pequeno pássaro preso por uma fina corrente é um símbolo de sua vida antes de ser completamente transformada. A conexão reflete o próprio poder da arte de criar e recriar laços com as pessoas através dos séculos, carregando um tanto de suas origens e provocando novas conexões com o inefável ao longo de gerações.

O quadro d’O Pintassilgo não é, afinal, um objeto qualquer que Decker persegue freneticamente, mas sim aquilo que o conecta com sua própria corporeidade e existência enquanto ser humano. Trata-se de uma reflexão sobre a potência que a arte tem de dar sentido sublime à própria vida, por mais nonsense e cruel que essa possa por vezes se mostrar – e a de Theo Decker certamente está cheia de passagens surreais e icônicas.

Na adaptação, outros cortes importantes são feitos no que diz respeito aos personagens. Figuras intrigantes e essenciais, como o culto e caótico ucraniano Boris Pavlikovsky, amigo inseparável de Theo em sua temporada na desértica Vegas, são reduzidos a elementos quase cenográficos para justificar as ações e os rumos que sua vida toma. Nessa dinâmica de achatamento, o próprio personagem principal acaba reduzido a uma faceta pouco cativante, assumindo diante das inconstâncias de sua trajetória uma atitude passiva, que nada tem a ver com sua intensa e paranoica vida mental.

Theo e Ashley Decker (Oakes Fegley e Hailey Wist) visitam o museu que dá impulso inicial à trama de O Pintassilgo.
Theo e Ashley Decker (Oakes Fegley e Hailey Wist) visitam o museu que dá impulso inicial à trama de O Pintassilgo.

Ao fim de tanta poda, o que sobra é um blockbuster de elenco chamativo e boas atuações – com a presença de Ansel Elgort, conhecido por A culpa é das estrelas, e Finn Wolfhard, estrela de Stranger Things, além de Sarah Paulson, Owen Wilson e Nicole Kidman –, mas reduzido a uma fração de sua potência original. Embora beba da riqueza do mistério de Donna Tartt, o filme deixa a desejar na estrutura da trama e no encantamento que poderia provocar no espectador. No entanto, pode ser entretenimento decente para uma tarde tediosa. Pra quem tiver mais paciência, o calhamaço de 2014 sugere um compromisso difícil, mas que seduz e encanta os que chegam ao seu fim.

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