Órion Lalli fala como o HIV mudou sua vida pessoal e profissional

Diagnosticado com HIV aos vinte e um anos, Órion Lalli apresenta uma produção artística multidisciplinar e autobiográfica

Tempo de leitura estimado: 7 minutos
Órion Lalli
Órion Lalli

Com uma obra voltada às questões de um corpo gay não binário que vive com HIV, em 2020 Órion Lalli é acusado por deputados do Rio de Janeiro de ter vilipendiado a fé cristã por meio da obra Todes es santes renomeada #EuNãoSouDespesa, exposta no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica. A partir de então, seu trabalho é censurado e sua vida não é mais a mesma. Perseguições, ameaças de morte e o exílio são temas que atravessam a entrevista, bem como a compreensão da arte enquanto uma ferramenta de luta e sobrevivência.

Órion Lalli
Da série EXIL, 2021, de Órion Lalli

Órion, como você se apresentaria para alguém que não te conhece?

Eu sou Órion Lalli, o primeiro de 8 irmãos. Meu avô era indígena e eu sou gay vivendo com HIV. Sou um fazedor: performer, ator, diretor de teatro, artista visual e nas horas vagas um pornô show. Tenho 27 anos e um projeto que fala sobre Igreja, Estado, HIV e AIDS hoje no Brasil.

O que é para você viver com HIV? E como isso influencia seu trabalho de arte?

Para falar como é viver com HIV hoje, é preciso revisitar meu passado. E isso vai sempre muito de encontro com o meu trabalho, que é muito autobiográfico. Quando eu descobri que passaria a viver com HIV eu não sabia o que isso seria. Eu tinha aquela imagem estereotipada dos anos 80, com o Cazuza estampando a capa da revista. Depois de começar a falar de uma forma artística sobre HIV e AIDS, hoje para mim viver com HIV é viver. É viver e viver. O HIV me influenciou em tudo. Quando comecei a olhar para a história da capa da revista do Cazuza e ver relações com outras histórias de pessoas com HIV, comecei a querer falar sobre isso. Então, tem o Órion antes do HIV e depois. Hoje me sinto muito mais empoderado para dizer “sim eu vivo com HIV”, apesar de todo o estigma.

Órion Lalli
LEITE UHT INTEGRAL DE VIADO COM HIV, 2020, Órion Lalli

A sexualidade e performatividade de gênero também me parecem dados importantes para sua obra, que como você mesmo disse é autobiográfica. As questões de gênero, sexualidade e viver com HIV aparecem sobretudo nos trabalhos de EM.COITROS. Você poderia falar um pouco sobre como estas questões te atravessam? E como isso reverbera em EM.COITROS?

Para falar de HIV, preciso primeiro falar sobre sexo. E foi ai que  comecei a fazer as primeiras performances que eu chamo de “coletas”. A primeira coleta se chama COLETA I – é necessário passar o fio pelo buraco da agulha ou rente ao corpo, em que eu costurava fotografias e meus primeiros exames de HIV num banco público de uma praça. Criava uma exposição semipermeável, pública e aberta. Mas só as performances não estavam dando conta do que estava querendo dizer. Então me propus a transar com as pessoas, tirar fotos e fazer vídeos deste momento: do sexo, do coito. Por isso que o projeto tem este nome, EM.COITROS.

Órion Lalli
COLETA I – é necessário passar o fio pelo buraco da agulha ou rente ao corpo, 2019, de Órion Lalli. PH: Gabriel Vieira.

EM.COITROS é um nome meio bagaceiro. Eu gosto da bagaceira, do bagaço. A gente não é frutinha? Por isso gosto do bagaço, daquilo que ninguém vai querer. Então propus estes encontros eróticos com homens e mulheres, trans e cis, para poder transar com o meu corpo vivendo com HIV. A partir de então comecei a criar imagens visuais e possíveis fragmentos deste processo. É um processo feito a mão, cada encontro é uma coisa nova. Tiveram encontros em que a pessoa não quis transar comigo porque eu vivo com HIV, mesmo que indetectável. Teve também um outro menino que transou comigo porque queria um comprimido antirretroviral. Ele queria um comprimido porque tinha muita vergonha de ir buscar o medicamento. Sei que tem muita gente falando sobre HIV e AIDS nos dias de hoje, mas ainda assim tem algumas questões delicadas. O que me faz pensar, qual é a visão que a gente tem sobre a morte, por exemplo?

Eu montei um site para estas fotos e vídeos, para que o trabalho não circule apenas em museus, galerias ou espaços acadêmicos. A ideia é levar estes estímulos para as pessoas de modo geral. Comecei a questionar qual é o papel de um governo que fala que somos despesa? Ou mais recentemente, que diz que vacina da covid-19 causa AIDS? É uma luta diária contra um governo que nos quer mortos. Eu vivo com HIV e viver com HIV é muito diferente de ser “soropositivo.” Este trabalho tem tudo haver com isso.

Sobre Todes es Santes renomeado #eunãosoudespesa foi censurado pela Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro. É certo afirmar que este acontecimento foi uma dobra em sua vida? Você poderia contar o que você vem vivendo desde então?

Este trabalho é um pequeno fragmento dos EM.COITROS e faz parte desta série Todes es Santes renomeado #eunãosoudespesa. É um oratório de madeira que por dentro é como o “Armário Normando”, de Georges Bataille. Por dentro é todo rosa, com objetos e imagens sagradas e profanas. Há uma colagem de uma mulher com um seio de fora e um pau. E servindo a esta imagem criada por mim, há um frasco com vinho e os meus medicamentos antirretrovirais.

Órion Lalli
Todes es santes renomeado #EuNãoSouDespesa, 2019, de Órion Lalli

Esta obra ficou pouquíssimos dias em exposição no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, até que deputados fizeram uma notícia crime contra mim, me acusando de vilipêndio religioso. O mais absurdo para mim, além de ser censurado, foi ter que responder na justiça como criminoso. O mais absurdo é um trabalho de arte, que não estava na Igreja e sim num espaço de arte que leva o nome de Hélio Oiticica, ser censurado e eu ter que responder criminalmente na justiça.

No dia em que retirei o trabalho da exposição, duas pessoas vestindo a camiseta do atual presidente me perseguiram na rua. Fizeram questão que eu percebesse que estavam me perseguindo. Depois disso, inúmeras mensagens de ódio chegaram até mim, dizendo coisas como “se a AIDS não te matar eu mesmo te mato”. Muitas mensagens de ódio e por diferentes redes. Passado um mês, tive muitas crises de pânico, chegando a parar no hospital algumas vezes. Não conseguia andar na rua com medo de ser morto. Ia ao mercado e imaginava que alguém pudesse me matar ali.

Despois disso, mudei de casa e fui morar o interior de São Paulo. Neste momento a Freemuse (uma organização que defende a liberdade de expressão e a diversidade) me contatou para que eu falasse do meu caso de censura no Brasil, dentro de um mapeamento mundial da censura. Logo depois eles me convidaram para participar de um webinar na ONU, falando sobre como que o fanatismo religioso mata. Na época, fiquei com muito medo de falar na ONU, porque é algo muito grande. Disse para os organizadores que estava com muito medo das ameaças voltarem. Logo depois desta fala as ameaças se intensificaram. No dia em que falei na ONU deixaram uma mala pegando fogo na minha porta. Dias depois deixaram um cachorro morto. Foi ai que comecei a acionar alguns contatos, para que me ajudassem a sair desta casa.

Desde o cachorro morto na minha porta, minha vida mudou radicalmente. No dia 8 de junho deixei minha casa e as organizações Freemuse, Artigo 19, Front Line Defenders e OAB me colocam em uma outra casa. Eles me protegeram até que eu pudesse organizar todos os papéis e tomar a segunda dose da vacina para então poder entrar em outro país e pedir asilo político. E é neste memento em que me encontro.

Recentemente você lançou o trabalho Última ceia ou o beijo de judas, em que se despede do Brasil e parte para o exílio. Um exílio político que se iniciou no dia 22 de agosto deste ano, certo? Você poderia falar sobre este processo?

Eu cheguei aqui dia 22 de agosto, mas eu só fui lançar este trabalho de 24 de outubro, que é meu aniversário. Algumas semanas antes de sair do Brasil entrei em contato com o Teatro Oficina, que é um símbolo de resistência, para poder gravar esta performance, que se chama Última ceia ou o beijo de judas.

Neste trabalho me coloco enquanto “corpo/cristo” na última ceia, na minha última performance no Brasil. Há uma mesa repleta de frascos de medicamentos de antirretrovirais e o meu corpo embalsamado. Ai me despeço da minha mãe Brasil, da minha pátria. É como uma carta de suicídio deste país que me gestou, para que a partir de então eu possa ter um novo recomeço.

Foi um processo difícil, doloroso e por isso é um trabalho denso. O Teatro Oficina é um templo sagrado para mim e não sei quando voltarei lá. Até para poder gravar este trabalho teve toda uma estrutura de segurança. Foi tudo muito complexo e este é um trabalho e despedida, para que eu tivesse meu último grito de liberdade neste país que me gestou.

Aqui, neste novo país que por segurança não posso dizer o nome, estou conhecendo pessoas e tendo que explicar o porque estou aqui. Isso me deixa muito cansado. Até porque  tem a questão de viver com HIV. Isso significa que preciso das medicações e para isso é preciso entender como a burocracia deste país funciona para conseguir a medicação e continuar meu tratamento; para continuar sendo indetectável. É preciso ter força para continuar seguindo, para continuar falando. É isso o que eu venho fazendo.

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