60 anos da Ditadura Militar: dez artistas que abordaram o tema

No ano em que se completam 60 anos do golpe militar no Brasil, conheça algumas obras que abordam um dos momentos mais violentos do país

Evandro Teixeira, Passeata dos Cem Mil, 1968

Há exatamente seis décadas o Brasil foi submetido à uma violenta Ditadura Militar originada pelo golpe militar de 1964, que depôs o presidente eleito pelo voto direto, João Belchior Marques Goulart (1918-1976). No decorrer de 21 anos, o país ficou sob a hegemonia de sucessivos governos militares, enfrentando uma repressão que se intensificava ao longo do tempo.

A censura imposta à imprensa e às artes, principalmente em 1968 após o decreto do AI-5 – o mais grave dos dezessete atos institucionais emitidos pela ditadura militar que permaneceu em vigor por 10 anos –, institucionalizou torturas, assassinatos, perseguições e violações de direitos humanos. Essa censura praticamente criminalizou a expressão política, levando músicos, atores, artistas plásticos e escritores a se reinventarem em busca de novas formas de expressão para continuar suas produções. Contudo, apesar das restrições, muitos artistas conseguiram driblar o sistema e, de maneira poética, protestar contra a repressão.

Além do descontentamento com o regime autoritário, a produção brasileira de artes visuais também acompanhou as mudanças artísticas globais da época. Enquanto na década de 1950 a arte nacional refletia um otimismo em relação ao desenvolvimento do país, evidenciado pelo concretismo e pela construção de Brasília, nos anos 1960 o foco estava em romper com todos os padrões estabelecidos pelo “sistema”. Movimentos como Conceitualismo, Nova Figuração, Site-Specific e Happenings revelaram-se no país como estratégias para camuflar a denúncia existente nos trabalhos artísticos.

Em um Brasil ainda marcado por ameaças à democracia, violência policial e tentativa de censura, é crucial compreender como esses eventos históricos continuam a influenciar nosso presente e moldar nossa sociedade. Ao refletirmos sobre o legado desses artistas e suas obras, somos confrontados com a necessidade de preservar a liberdade de expressão como um pilar fundamental da democracia e de combater todas as formas de opressão e injustiça.

Neste cenário, vale ressaltar que, durante o mês de março e início de abril, três exposições importantes que tratam do tema serão inauguradas: “Paisagem e Poder: Construções do Brasil na Ditadura” no Centro MariAntonia da USP (19/03), “Que país é este? A câmera de Jorge Bodanzky durante a ditadura brasileira, 1964-1985” no IMS Paulista (23/03) e “60 anos do golpe militar” na Pinacoteca de São Paulo, em parceria com o Memorial da Resistência de São Paulo (06/04).

Enquanto isso, confira uma lista com 10 obras que revelam como artistas de diferentes gerações, desde aqueles que produziram durante o regime até artistas contemporâneos, abordaram o tema, refletindo a relação entre o Brasil de ontem e as cicatrizes deixadas até os dias de hoje.

Anna Maria Maiolino, O Herói, 1966

Anna Maria Maiolino, O Herói, 1966

A obra é uma crítica contundente ao regime militar brasileiro, destacando a perversão e autoritarismo do Estado. A caveira na obra simboliza a morte e a violência institucional desse período, enquanto Maiolino antecipa a crítica às violações dos direitos humanos, evidenciando que os métodos de controle e repressão iniciaram muito antes do endurecimento com o AI-5 em 1968.

A ironia do título reflete na figura do herói, adornado com medalhas, questionando sua verdadeira natureza em servir ao poder. Esta é a segunda versão da obra, contendo apenas as medalhas originais, uma vez que a primeira foi destruída. Em 2015, a pintura foi doada pela artista ao MASP e desde então tornou-se ícone de um dos principais acervos da América Latina.

Jaime Lauriano, Morte Súbita, 2014. Foto: CCBB/Divulgação

Jaime Lauriano, Morte Súbita, 2014

No vídeo de 24 minutos, homens vestidos com a camisa da Seleção Brasileira têm seus rostos cobertos pela camisa amarela da CBF, enquanto como trilha sonora, são apresentados os nomes de mortos e desaparecidos em 1970,  durante a ditadura militar no país.

O título da obra, que empresta o nome de uma antiga regra de desempate do futebol, aqui é aplicado àqueles que são chamados de “marginais” e rendidos pela polícia, uma imagem tão habitual no universo midiático brasileiro quanto jogadores que formam uma barreira e esperam o chute adversário.

Cildo Meireles, Inserções em circuitos ideológicos: Projeto Coca-Cola, 1970

Cildo Meireles, Inserções em circuitos ideológicos: Projeto Coca-Cola, 1970

O artista conceitual desafiou o regime militar ao aplicar decalques em silk-screen em garrafas retornáveis de Coca-Cola, que posteriormente circulavam com mensagens anti-imperialistas ou com instruções para fazer coquetéis molotov.

Usando o sistema consumista como plataforma de protesto, as mensagens, inicialmente invisíveis nas garrafas vazias, tornavam-se visíveis quando cheias com o líquido escuro. Dessa forma, a obra alcançou um público imenso, enquanto, ao mesmo tempo, escapava do vigilante monitoramento executado pela ditadura em todos os canais convencionais de comunicação.

Paulo Bruscky, Título de eleitor cancelado, 1976

Paulo Bruscky, Título de eleitor cancelado, 1976

Durante aquele tempo, a obra “Título de eleitor cancelado” teve cópias amplamente difundidas através da rede de arte postal. Ao utilizar o título de eleitor como material artístico, Bruscky transforma esse documento, que atesta nossa cidadania, em um símbolo da supressão da participação popular nas decisões políticas, evidenciado pelo carimbo de cancelamento. A circulação da obra, enviada para diversas localidades ao redor do mundo pelos correios, serviu como um meio de denúncia da restrição dos direitos fundamentais durante o período ditatorial no Brasil. Bruscky, assim como muitos outros artistas da época, enfrentou censura constante e foi preso pelo menos duas vezes, não apenas por participar de manifestações estudantis, mas também devido ao caráter contestador de suas produções.

Rivane Neuenschwander, A.E. (Nunca mais, Brasil), 2023

Rivane Neuenschwander , A.E. (Nunca mais, Brasil), 2023

O trabalho feito em tapeçaria apresenta uma colcha de retalhos elaborada, onde monstros infantis e criaturas estilizadas se cruzam com letreiros que identificam locais clandestinos de tortura, assassinato e ocultação de corpos durante a ditadura militar brasileira. Essas representações resgatam o universo explorado pela artista em sua série contínua “O nome do medo” (2015 – em andamento), na qual ela investiga os medos infantis. A obra exige uma atividade semelhante à decifração de arquivos, revelando as práticas criminosas do regime ditatorial. Os nomes dos locais, com letras embaralhadas, desafiam a compreensão do espectador, refletindo a dificuldade em reconhecer e entender um passado marcado pelo trauma.

Recentemente, a obra esteve em destaque na exposição individual da artista intitulada “O fardo, a farda, a fresta”, realizada pela galeria Fortes D’Aloia & Gabriel no final do ano passado, abordando a persistência de estruturas contemporâneas herdadas do período da ditadura militar no Brasil.

Carmela Gross, Barril, 1969

Carmela Gross, Barril, 1969

Durante a Bienal de São Paulo de 1968, mesmo marcada pelo boicote de diversos artistas em protesto contra a ditadura militar, a artista paulistana decidiu expor sua obra “Barril”, fazendo alusão ao instrumento de tortura utilizado pela polícia para provocar afogamento em presos políticos.

Na 34ª Bienal de São Paulo em 2021, a relevância da obra é revisitada, convidando à reflexão sobre seus significados históricos e suas interpretações contemporâneas em um Brasil ainda influenciado pela submissão aos EUA e por ameaças à democracia.

Evandro Teixeira, Passeata dos Cem Mil, 1968

Evandro Teixeira, Passeata dos Cem Mil, 1968

Figura central do fotojornalismo brasileiro na segunda metade do século XX, Evandro Teixeira capturou uma das imagens mais emblemáticas da resistência contra o regime militar no Brasil, durante a Passeata dos Cem Mil – manifestação popular organizada pelo movimento estudantil que contou com a participação de artistas, intelectuais e outros setores da sociedade brasileira –, na Cinelândia, Rio de Janeiro. Durante o discurso de Vladimir Palmeira, líder estudantil, Teixeira percebeu a concentração da multidão e mudou de lente para capturar a foto, que ao ser ampliada, retratou nitidamente centenas de manifestantes presentes.

Em 2007, foi publicado o livro “1968 Destinos 2008: Passeata dos 100 Mil”, com fotografias de Evandro Teixeira. As 100 pessoas selecionadas na foto de 26 de junho de 1968 foram novamente fotografadas pelo fotojornalista baiano na Candelária. Neste reencontro, essas pessoas puderam contar suas histórias, relembrar o que as levou até a marcante Passeata dos Cem Mil e compartilhar como suas vidas se desdobraram dali para frente.

Hélio Oiticica, esquema para o projeto do “parangolé-área” A ronda da morte, 1979

Hélio Oiticica, A Ronda da Morte, 1979

Em 1979, abalado pela execução brutal de mais um de seus amigos, Hélio Oiticica escreveu uma carta para a fotógrafa Martine Barrat, descrevendo um “parangolé-área” chamado “A ronda da morte”. Este seria uma espécie de tenda de circo, com luzes estroboscópicas e música em seu interior, onde as pessoas poderiam entrar e dançar. Enquanto a festividade aconteceria dentro da tenda, homens a cavalo emulando uma patrulha policial a cercariam, numa alusão direta ao estado de vigilância e violência que persistia, apesar da aparente normalidade do cotidiano.

No entanto, essa obra nunca foi concretizada, nem pelo próprio artista, nem pela Bienal de 2021, que inicialmente planejou realizá-la pela primeira vez, mas foi impedida pela pandemia, resultando apenas na exposição dos projetos dessa criação.

Leila Danziger, da série Perigosos, subversivos, sediciosos (Cadernos do povo brasileiro), 2017. Vista parcial. Foto: Leila Danziger.

Leila Danziger, Perigosos, subversivos, sediciosos [cadernos do povo brasileiro], 2017

Artista, poeta e professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Leila Danziger é autora da série “Perigosos, subversivos, sediciosos [cadernos do povo brasileiro]”, obra produzida a partir dos livros censurados durante o período ditatorial. Para a exposição “Hiatus: A memória da violência ditatorial da América Latina”, que esteve em cartaz em 2018 no Memorial da Resistência, em São Paulo, Danziger fixou os livros proibidos em uma parede e, em outra, dispôs reproduções de rostos de desaparecidos, representando tanto aqueles que foram vítimas da ditadura quanto figuras contemporâneas, como Amarildo Dias de Souza – um ajudante de pedreiro que ficou conhecido nacionalmente devido ao seu desaparecimento desde 14 de julho de 2013, após ter sido abordado por policiais militares e levado da porta de sua residência, na comunidade da Rocinha, em direção à sede da Unidade de Polícia Pacificadora local. A série transcende a violência instituída do regime militar, lançando um olhar crítico sobre a continuidade dessa violência nos dias atuais.

Carlos Zílio, Identidade Ignorada, 1974

Carlos Zílio, Identidade Ignorada, 1974

No período entre 1960 e 1970, um pouco antes de ser perseguido e exilar-se na França, o artista visual e professor carioca engajou-se ativamente na oposição ao regime militar ditatorial estabelecido no Brasil, empregando sua arte como uma forma de resistência e expressão política. Em uma de suas obras mais emblemáticas, “Identidade Ignorada”, Zílio aborda os desaparecimentos ocorridos durante este período. Outro trabalho que, embora criado há décadas, permanece atual e relevante, especialmente em um contexto em que a diversidade e as lutas identitárias são desafiadas e censuradas tanto pelo Estado quanto por grupos sociais conservadores.

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