“Negros na Piscina” te convida a mergulhar e celebrar a vida

A mostra cearense dá espaço para as populações marginalizadas poderem escrever suas próprias histórias distantes dos estereótipos

Vista da exposição “Negros na Piscina”. Foto: Marilia Camelo

Era 18 de junho de 1964, quando ativistas negros e brancos invadiram o hotel Monson Motor Lodge, na Flórida, e pularam na piscina. O simples ato, mais do que pacífico, era encorajado pelo anseio do direito ao divertimento, ao lazer e à cidadania. Mas para o gerente do hotel, James Brock, aquela cena no espaço exclusivo para brancos devia ser imediatamente interrompida. Ele não pensou duas vezes, pegou uma garrafa de ácido clorídrico, usado para limpar azulejos, e jogou na água para forçar os manifestantes a saírem de lá. O episódio aconteceu dias depois de Martin Luther King ter sido preso por tentar almoçar numa área segregada no restaurante desse mesmo hotel. Os ativistas foram presos, mas a repercussão do protesto foi tão grande que, no dia seguinte, o Senado estadunidense aprovou a Lei dos Direitos Civis, que acabou com a legalidade da segregação racial em locais públicos e privados, depois de meses de debates.

Motor Lodge em St. Augustine, Flórida, 1964.

Ainda que hoje a população negra não seja legalmente impedida de ocupar os espaços físicos que bem desejarem, os espaços imaginários e simbólicos ainda estão em disputa. Por isso, há um grande esforço para visibilizar, no meio artístico, imagens dessas pessoas distantes dos retratos estereotipados e marcados pela violência, tensão, dores e perdas. E é nessa contramão que nasce a mostra Negros na Piscina na, recém inaugurada, Pinacoteca do Ceará. Com cerca de 60 artistas brasileiros, ela apresenta a paisagem social que vem sendo construída pouco a pouco, onde “corpos pretos, indígenas e travestis, entre outros vários igualmente negros, possam ter direito a trabalho e a descanso”, como diz o texto curatorial.  

Aniversário de 6 anos da Renatinha, 1988, Afonso Pimenta | Projeto Retratistas do Morro

A curadoria do pesquisador e escritor Moacir dos Anjos e da jornalista, professora e escritora Fabiana Moraes, apresenta um espaço emoldurado numa espécie de grandes azulejos azuis que, juntamente com as obras, nos convidam a mergulhar em poéticas sociais acolhedoras. Aqui não tem engano quando dizem “pode pular, a água está quentinha”. Logo no primeiro ambiente, passamos por baixo das bandeiras de Haroldo Saboia que carregam, entre outros trechos de músicas, os dizeres “quero ver você alegre”. 

Segundo Moacir, é uma exposição que se comunica com todos, sem grandes mistérios conceituais. A exemplo disso, o trecho do filme popular brasileiro, Que Horas Ela Volta, emociona a muitos mostrando a personagem Val, a empregada doméstica, entrando na piscina de seus patrões que era proibida para ela. As fotografias de festa infantil de Afonso Pimenta e os Banquetes de Renata Felinto também geram alta e fácil identificação, colocando a mesa como esse lugar de encontro e a comida como ponto de celebração e fartura.

Ainda assim, os curadores conseguiram combinar elementos de leveza com discursos totalmente políticos, colocando a população negra como protagonista e autora de suas próprias narrativas. “Vida, estou comendo você”, proclama a frase de Yhuri Cruz estampada em letras garrafais na parede. A colagem da série Atualização traumática de Debret , de Gê Viana, também apresenta pessoas festejando e um totem de frutas no lugar do escravo açoitado na imagem original do pintor francês.

Levantamento do Mastro Festa do Divino Espirito Santo, da série Atualização traumática de Debret, 2020, Gê Viana

Vale ressaltar, ainda, que a coletiva traz ao público, além de jovens artistas, nomes inéditos à cena artística em âmbito nacional, como o projeto Retratistas do Morro, João Bertolini, Jéssica Amorim, Julio Souza, Marlon Diego, o dueto cearense Terroristas del Amor, entre outros.  

Contudo, os curadores lamentam o descompasso entre o sucesso que a exposição tem feito com público em relação desproporcional com falta de visibilidade na imprensa geral. Em um único dia, Negros na Piscina recebeu mais de 2 mil pessoas, um número que não é tão comum nem nos grandes museus de São Paulo. Isso “mostra uma visão muito anacrônica a respeito do que é Brasil”, afirma Fabiana Moraes. “O que está acontecendo no Ceará, em relação a equipamento cultural, é inédito no Brasil. É um investimento muito grande em equipamentos culturais mesmo durante o governo Bolsonaro”, ela completa se referindo às conquistas das inaugurações da Pinacoteca do Ceará, Centro Cultural do Cariri e Museu da Imagem e do Som, todas realizadas em 2022.

Negros na Piscina nos vem como uma onda forte de insurgência e frescor nesse verão. Uma onda que cobre e ultrapassa os tempos de resistência, trazendo a possibilidade de respirar debaixo d’água. É um espaço criado que, como diria Arnaldo Antunes, quem tem o privilégio de visitar está “protegido, salvo, fora de perigo, aliviado, sem perdão e sem pecado, sem fome, sem frio, sem medo, sem vontade de voltar”.

Serviço 

Negros na Piscina

Local: Pinacoteca do Ceará
Endereço: Rua 24 de Maio, 34 – Centro, Fortaleza – CE
Data: Até 7 de maio de 2023
Funcionamento: De quinta a sábado, das 12h às 20h. Domingo, das 10h às 18h.
Ingresso: Grátis

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