Masp abre exposição de Maria Martins

Com curadoria de Isabella Rjeille, a exposição apresenta 45 trabalhos, além de documentos, publicações e fotografias que narram a trajetória de vida da artista

Maria Martinas_desenho
Sem título, Maria Martins

Artista, articuladora, escritora, embaixatriz. Mulher, mãe, amante. Uma das mais célebres e potentes artistas brasileiras, Maria Martins foi mais aceita e entendida nos EUA do que em seu país natal.  Viveu a graça e a sina de ser casada com o embaixador Carlos Martins Pereira e Sousa: por um lado tinha acesso privilegiado a diretores de museu, críticos, curadores, colecionadores e artistas, tornando-se uma grande intermediadora cultural; por outro, acabava sendo vista, por muitos críticos,  apenas como “a esposa do embaixador” ou “amante de Duchamp” e não como uma artista vigorosa e inovadora. Mas há alguns anos a crítica e o mercado de arte concentram esforços para reparar essa falha. Na próxima sexta-feira, dia 27 de agosto, o MASP abre Maria Martins: desejo imaginante, mostra que, somada à sua respectiva publicação, representa a mais ampla pesquisa organizada sobre a artista, buscando reposiciona-la na história da arte brasileira e internacional.

Amazonia, de 1941, de Maria Martins
Amazonia, de 1941, de Maria Martins

Com curadoria de Isabella Rjeille, a exposição busca revelar ao público como a artista articulou os diversos imaginários acerca do Brasil e como ela desenvolveu e revolucionou, ao longo da produção,  a ideia de “trópico” – um lugar reivindicado, reafirmado e reinventando por ela -, negociando com diferentes imaginários projetados sobre ela enquanto mulher, artista e brasileira produzindo no exterior.

Dividida em cinco núcleos (  Imaginários amazônicos; Como uma liana; Por muito tempo acreditei ter sonhado que era livre; Duplos impossíveis; e, Mitologias pessoais), a mostra apresentará 45 esculturas, gravuras, desenhos e pinturas produzidas entre as décadas de 1940 e 1950, além de documentos, publicações e fotografias que narram a trajetória de vida da artista. Revela, ainda, um aspecto pouco conhecido da artista: ao voltar para o Brasil, Maria se dedicou à escrita! Ainda em vida, publicou os livros Ásia maior: o planeta China , em 1958 – ela foi a primeira latino-americana a entrevistar o líder comunista e revolucionário chinês Mao Tsé-Tung – Ásia maior: Brama, Gandhi e Nehru, em 1961, e Deuses malditos I: Nietzsche, em 1965, além de manter a coluna Poeira da Vida no jornal carioca Correio da Manhã.

Cobra Grande, de Maria Martins, de 1943
Cobra Grande, de Maria Martins, de 1943

Uma mulher dos trópicos

“O fato de ter desenvolvido grande parte de seu trabalho no exterior a impediu de participar ativamente dos movimentos modernistas brasileiros. Porém, ela não deixou de realizar suas leituras e contribuições únicas a respeito de certa visualidade nacional, o que acabou lhe rendendo a alcunha de ‘escultora dos trópicos'”, explica a curadora. “Maria buscou nas mitologias amazônicas e na cultura afro-brasileira referências para as suas primeiras obras, dialogando com as tendências modernistas brasileiras da primeira metade do século 20. No entanto, a partir de meados dos anos 1940, a artista deixa de lado certa visualidade comumente associada ao Brasil e passa a criar suas próprias mitologias em bronzes de médias e grandes proporções”, completa. 

Depois de viver em Quito, Paris, Copenhague, Tóquio e Bruxelas, Maria e Carlos Martinsl se estabeleceram, no final da década de 1930, nos Estados Unidos e, a partir de então, a carreira da artista se consolidou. O início dos anos 1940 nos Estados Unidos foram marcados por políticas governamentais de aproximação com os países latino-americanos no contexto da Segunda Guerra Mundial. No Brasil, o então presidente Getúlio Vargas investia na exportação de certa cultura brasileira como parte de sua política de estado

Uirapirú, de Maria Martins, de 1944
Uirapirú, de Maria Martins, de 1944
Como uma liana, de Maria Martins, de 1946
Como uma liana, de Maria Martins, de 1946
Acaso Desvairado, de Maria Martins,  de 1947
Acaso Desvairado, de Maria Martins, de 1947
Prometeus I, de Maria Martins, 1949
Prometeus I, de Maria Martins, 1949
Sem título, Maria Martins
Sem título, Maria Martins

Ela começou, então, representando o Brasil que conhecia, “visto de longe”, e, talvez por isso, os temas de suas primeiras esculturas fossem baseadas nas imagens de seu país que chegavam ao exterior – giravam em torno do samba, com representações de mulheres negras hipersensualizadas. Era o momento em que o Brasil habitava o imaginário internacional enquanto um país tropical, exótico e alegre, distante dos horrores da guerra. Neste contexto de disputas políticas, Maria Martins participou de suas primeiras exposições coletivas em 1940 e realizou sua primeira exposição individual na Corcoran Gallery em Washington em 1941, onde obteve grande sucesso de vendas e incorporação de seus trabalhos às coleções institucionais estadunidenses – pense no Museum of Modern Art de Nova York e de San Francisco, Metropolitan Museum of Art, Philadelphia Art Museum, Brooklyn Museum.

Estabeleceu um ateliê em Nova York, longe dos eventos oficiais e do papel diplomático exercido em Washington, e lá começou a estudar fundição em bronze com o artista lituano Jacques Lipchitz, utilizando-se da técnica da cera perdida, que se tornaria sua principal linguagem enquanto escultora. Foi Lipchitz, dizem, que a incentivou a estudar as mitologias indígenas e, em 1943, a artista abriu uma individual na Valentine Gallery, em Nova York, apresentando figuras antropomórficas que se confundem com a natureza que as rodeia, num processo contínuo de metamorfoses: teve a obra descrita como “pagã e violenta” e, ao mesmo tempo, chamou a atenção de André Breton que a convidou a participar do movimento surrealista.

Não se esqueça que eu venho dos trópicos, de Maria Martins, de 1945
Não se esqueça que eu venho dos trópicos, de Maria Martins, de 1945
Glebe-asas, de Maria Martins, de 1944
Glebe-asas, de Maria Martins, de 1944
O implacável, de 1947, de Maria Martins
O implacável, de 1947, de Maria Martins

Seres das lendas os povos originários e elementos da flora da Amazônia lhe deram, então, o selo de  “escultora dos trópicos”. “Mas foi uma imagem moldada em meio às fantasias primitivistas do período e os interesses políticos e comerciais sobre o Brasil”, pontua Rjeille, “essa obsessão pela nacionalidade dela acabava por ofuscar leituras mais complexas acerca de sua obra”. Entre os trabalhos desta primeira fase, vale conferir, na exposição, Amazônia e Cobra Grande

A Amazônia foi  uma referência inicial para a artista,  mas a exposição nos mostra que ela não fez apenas uma “antropofagia” descuidada. Aos poucos foi desenvolvendo seu próprio imaginário por meio da criação de esculturas nas quais figuras pareciam se confundir entre humanos, animais, vegetais e minerais. “A partir de 1944, os trópicos imaginados de Martins ganham uma nova camada de significado. Seus títulos passaram a ter ares mais ‘literários’, deixando um pouco de lado as mitologias amazônicas para trabalhar suas mitologias pessoais”, ressalta Rjeille. 

O impossível, Maria Martins, de 1945
O impossível, Maria Martins, de 1945

Questões relacionadas ao desejo, ao erotismo e a uma certa ideia de feminino – que sempre estiveram presentes em sua prática – ganham ares “monstruosos” e inquietantes, desafiando a moralidade da época e as expectativas de um público estrangeiro a respeito do trabalho de uma artista brasileira. Esculpia deusas que também podiam ser monstras. Eróticas e perigosas, apresentavam uma sensualidade nada passiva. As figuras femininas devoram o parceiro.  Surgem contorcidas, sinuosas e selvagens. Fala sobre o desejo feminino, algo transgressor na época. Salomé, por exemplo, apareceu  em 1939 com as pernas abertas e, é claro, incomodou a elite patriarcal e tradicional brasileira. Nas esculturas oníricas e viscerais, a natureza não era representada como algo dominado pela civilização, era símbolo de potência. Obras como O impossível , da década de 1940, Não se esqueça que eu venho dos trópicos, de 1945, Gleba-asas, de 1944, são algumas das mais representativas do período e estão na exposição. 

A escultura Não te Esqueças Nunca que Eu Venho dos Trópicos inaugura a última parte da mostra marcando o momento mais importante de sua carreira, quando Maria reconfigura a ideia do que significa ser uma artista de um país tropical.  A curadora explica: “A figura feminina, com braços que viram garras e fogo saindo da área pélvica, parece estar num processo de transformação dolorido. Com essa escultura, ela subverte o imaginário associado aos trópicos: não é mais alegre, exótico e sensual, e sim monstruoso, violento, inquietante e angustiante como a própria História do Brasil”.  

Maria Martins: desejo imaginante

Data: 27 de Agosto até 30 de janeiro de 2022

Local: Masp

Endereço: Av. Paulista, 1578 – Bela Vista, São Paulo

*Idealizada e produzida em parceria com a Casa Roberto Marinho, a exposição vai viajar para a instituição carioca em março de 2022

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